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Quimeras e Utopias

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Tribunal da Relação do Porto e as viagens no tempo gratuitas

Quando há uns tempos, fiz uma investigação bibliográfica aprofundada para a minha tese de mestrado sobre os manuais de conduta para as mulheres (1900-1950) e deparei-me, como seria de esperar, com um sem fim de livros da época de cariz extremamente machista, contra a emancipação feminina, conservadores, embrulhados na infalível proteção religiosa, exultantes na sua fúria da defesa da «moral e bons costumes». A imagem da mulher, que exigia ser preservada a ferro e fogo, era a da mulher submissa, esposa dócil, dona de casa, um exemplo de virtudes e de subjugação, um ser que não ouve, não questiona, só obedece. Linhas e linhas disto, deste discurso repetido até à exaustão por certas personalidades da época que, vendo os avanços emancipatórios no exterior, temiam que tal coisa assolasse a bela pátria lusitana.


No entanto, a minha habituação a este discurso é de o ver escrito em livros antigos, com o acordo ortográfico de 1911, numa linguagem que me remetia ao passado. Um discurso ligado a páginas amarelecidas, livros de capa dura, palavras encerradas há décadas em estantes de bibliotecas. Tudo aquilo eram reminiscências de tempos idos que não tinham como nem porquê voltar.


Quando, este fim de semana, me deparo com um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do juiz desembargador Neto de Moura, relativo a um caso de violência doméstica, todas aquelas palavras, frase por frase, tal e qual como se estivesse a olhar para um livro com cem anos, estavam lá escarrapachadas: a violência desculpada pelo adultério, a gravidade do adultério feminino, a ofensa à honra do homem, as constantes referências à bíblia, tudo aquilo era uma viagem ao passado, uma viagem no tempo de forma gratuita.


Julgava eu que a distopia era opção literária, afinal também é recurso judicial. Admirável mundo novo com cheiro insuportável a mofo…

Tribunal porto.jpg

Excerto do acordão de 11/10/2017, do Tribunal da Relação do Porto, escrito pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e assinado também pela Juiza Maria Luísa Abrantes. O acordão pode ser consultado na sua totalidade aqui

De salientar que é possível encontrar argumentação semelhante usada pelo Juiz Neto de Moura noutros acordãos redigidos por ele.

4 comentários

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    Guilherme Noronha 26.10.2017

    "adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem"

    Se fosse ao contrário isto nunca seria escrito. As limitações do juiz influenciaram a sua decisão precisamente na questão do género.

    A censura do acórdão e respetivo conteúdo é legítima (se não mesmo obrigatória). Chamar outras questões é por à prova a estreita linha entre uma justa luta por direitos e o contraproducente fundamentalismo.
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    Sónia Pereira 26.10.2017

    A censura do acórdão tem, no entanto, de ser feita tendo em mente que este não é caso único nem por parte do juiz nem nos casos referentes à questão da violência doméstica. O acórdão é um problema, mas é acima de tudo um sintoma. Ainda resiste uma mentalidade machista dominante em vários meios e o judicial, último reduto de qualquer vítima que procure justiça, parece ser um desses meios.

    Numa análise de 500 decisões judiciais referentes a violência doméstica, foram abundantes as decisões que menorizavam a violência ou a davam como fenómeno pontual irrelevante: o réu quando não bebe e não bate na mulher até é boa pessoa, bom pai, bom marido, bom cidadão; uns murros e pontapés não se podem considerar violência doméstica; ele bateu-lhe, mas é um cidadão integrado na sociedade, com trabalho e cumpridor, etc.

    Para haver mudanças, é necessário perceber a história, a génese do problema e este problema não se encerra, de todo, na questão do acórdão em questão. E esta minha análise não tem nada de fundamentalista nem se enquadra em nenhuma cruzada feminista. É apenas factual.
  • Sem imagem de perfil

    Guilherme Noronha 26.10.2017

    Sim, mas não quer acusar os juizes todos por causa deste e outros, certo?

    É um facto que tem a lição bem estudada relativamente à violência doméstica. Mas não darão os juízes "como fenómeno pontual irrelevante" a muitas outras violações da lei? Não me parece que seja um fenómeno ou um movimento dos juízes contra as mulheres. Esta classe profissional também representa (espera-se) a sociedade. Há bestas e pessoas normais...

    Sou contra as conotações negativas associadas às palavras machismo e feminismo. Aliás, acho que nem deviam existir as palavras e os movimentos porque representam uma luta, ainda que pela igualdade, entre os géneros. Essa luta deve ser em conjunto e penso que está aqui o erro estratégico das mulheres. É quererem atingir o objetivo de igualdade sozinhas.

    A posição mais agressiva dos homens pode ter fundamentos históricos e, inclusivé, biológicos mas o facto de sermos racionais e funcionarmos em sociedade obriga-nos a alterar/controlar instintos.

    Sónia, eu não encontrei nenhuma posição fundamentalista no artigo. Estava a comentar os comentários
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