Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Tribunal da Relação do Porto e as viagens no tempo gratuitas

Quando há uns tempos, fiz uma investigação bibliográfica aprofundada para a minha tese de mestrado sobre os manuais de conduta para as mulheres (1900-1950) e deparei-me, como seria de esperar, com um sem fim de livros da época de cariz extremamente machista, contra a emancipação feminina, conservadores, embrulhados na infalível proteção religiosa, exultantes na sua fúria da defesa da «moral e bons costumes». A imagem da mulher, que exigia ser preservada a ferro e fogo, era a da mulher submissa, esposa dócil, dona de casa, um exemplo de virtudes e de subjugação, um ser que não ouve, não questiona, só obedece. Linhas e linhas disto, deste discurso repetido até à exaustão por certas personalidades da época que, vendo os avanços emancipatórios no exterior, temiam que tal coisa assolasse a bela pátria lusitana.


No entanto, a minha habituação a este discurso é de o ver escrito em livros antigos, com o acordo ortográfico de 1911, numa linguagem que me remetia ao passado. Um discurso ligado a páginas amarelecidas, livros de capa dura, palavras encerradas há décadas em estantes de bibliotecas. Tudo aquilo eram reminiscências de tempos idos que não tinham como nem porquê voltar.


Quando, este fim de semana, me deparo com um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do juiz desembargador Neto de Moura, relativo a um caso de violência doméstica, todas aquelas palavras, frase por frase, tal e qual como se estivesse a olhar para um livro com cem anos, estavam lá escarrapachadas: a violência desculpada pelo adultério, a gravidade do adultério feminino, a ofensa à honra do homem, as constantes referências à bíblia, tudo aquilo era uma viagem ao passado, uma viagem no tempo de forma gratuita.


Julgava eu que a distopia era opção literária, afinal também é recurso judicial. Admirável mundo novo com cheiro insuportável a mofo…

Tribunal porto.jpg

Excerto do acordão de 11/10/2017, do Tribunal da Relação do Porto, escrito pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e assinado também pela Juiza Maria Luísa Abrantes. O acordão pode ser consultado na sua totalidade aqui

De salientar que é possível encontrar argumentação semelhante usada pelo Juiz Neto de Moura noutros acordãos redigidos por ele.

4 comentários

  • Imagem de perfil

    Sónia Pereira 24.10.2017

    Qualquer tipo de violência é reprovável, mas no caso da violência doméstica temos de fazer um ressalva, não podemos equiparar a violência do homem sobre a mulher à da mulher sobre o homem. A violência sobre a mulher tem um carácter sistémico, apoiado numa mentalidade que se entranhou, de submissão e objetivação feminina. A violência conjugal da mulher sobre o homem é individualista, é uma agressão que tem a ver unicamente com a pessoa que agride e não com uma cultura/mentalidade dominante que durante séculos validou esse comportamento. A questão da ressalva da honra, da punição do adultério, tem apenas um sentido. Sempre teve e persiste: quem tem honra a ser defendida é o homem e quem deve ser punida é sempre a mulher. E isso tem uma profunda implicação nas relações de poder/violência conjugal. Claro que serão vários os homens a também serem vítimas de violência, mas nem as motivações dessa violência são as mesmas, nem o grau de violência e a expressão dos números serão os mesmos.

    Quanto às questões de género, para alguém que vive num meio mais cosmopolita, estas podem ser já consideradas irrelevantes, pois tudo se assume como resolvido e talvez tanto falatório sobre o assunto possa parecer excessivo. No entanto, o eco das palavras de ordem ainda mal saiu da cidade, do litoral. Posso garantir. A mentalidade dominante ainda é a mesma de décadas atrás e talvez este acórdão (como outros do mesmo juiz) choquem as pessoas de bem (a mim choca-me), mas apesar de tudo não é assim tão surpreendente. Serão muitas as pessoas por esse Portugal profundo, interior, que olharão para aquilo com naturalidade, como um espelho da sua realidade diária. Muitas pessoas ainda pensam assim, muitas pessoas mais velhas, mesmo em círculos mais cultos, ainda pensam assim.

    As mudanças exigem tempo e esforço e só muita educação pode mudar mentalidades, neste tema e em muitos outros, claro está. Em certos aspetos, nós, portugueses, ainda somos muito provincianos, uns saloios que se deixam fascinar por coisas sem importância e com muita falta de conhecimento/cultura. Cabe a cada um de nós tentar passar à geração seguinte, inputs de mudança.
  • Sem imagem de perfil

    Robinson Kanes 24.10.2017

    A violência, independentemente de ser do homem contra a mulher ou da mulher contra o homem é exactamente igual. Não podemos esquecer que a violência não é só física, por exemplo e, mesmo sendo física, não deixa de ser violência, independentemente do género. Não concebo que a violência, na sua génese seja uma questão individualista ou não... A lei não tem sequer de atentar se o homem agiu por uma questão de mentalidade e a mulher não - é violência. A questão do grau de violência é relativa, mais uma vez coloco a questão da agressão psicológica e, um exemplo simples, um projéctil é um projéctil independentemente de quem pressiona o gatilho.

    Podemos sim, e separando da agressão (seja de que tipo for), de uma questão cultural e de mentalidades. E aí sim, existe um trabalho que tem de ser feito... Até porque existem culturas, nomeadamente algumas matriarcais (nem todas) onde a mulher tem exactamente essa espécie de "poder" que apontas ao homem... São casos curiosos do ponto de vista da antropologia e da etnologia. Aí estamos de acordo... Infelizmente olhamos para muitas coisas como um tem de ser e isso deve-se muito à religião também... Aliás, a mulher submissa ao homem, por norma tem sempre por detrás uma veia religiosa, é assim na maioria. No entanto, vivemos num Estado Laico, cuja presidência beija a mão a quem promove essa política, e é aí que temos de agir. Até porque, e foquei isso no meu comentário, o Direito Natural não dá sequer o direito a defender esses comportamentos, quanto mais o civil ou penal.




  • Imagem de perfil

    Sónia Pereira 26.10.2017

    Tudo se resumo a uma questão de poder. Na génese de qualquer violência está a questão do poder de subjugar alguém. A questão aqui é que, na nossa sociedade e há já vários séculos, o poder é do domínio masculino. Vivemos numa sociedade patriarcal e não há nada que possa mudar essa evidência. Não quer dizer que, havendo uma sociedade matriarcal, as mulheres não fizessem uso semelhante do poder de subjugação. O poder sempre foi corruptível. No entanto, a nossa sociedade é inequivocamente patriarcal.
    Isso não quer dizer que uma mulher não possa cometer atos violentos, mas quer, isso sim, dizer que a sociedade é certamente mais benevolente para a violência masculina e para o poder exercido pelo homem sobre a mulher, do que o oposto. No caso português, os anos de ditadura arreigaram ainda mais toda uma mentalidade de subjugação e objetivação feminina. A religião em muito contribuiu para isso, durante essa época, mas também nos séculos anteriores. Há toda uma ideia de imoralidade, pecado, ligado à mulher e ao adultério, que tem como consequência um certo desculpar de atos extremos por parte de um marido «traído». Embora o oposto não se aplique, claro está. Uma mulher que trai, é puta, um homem que o faz é um garanhão.
    E é esta mentalidade que ainda persiste (e, em meios pequenos e interiorizados, dominante), que tem de ser mudada através da educação, da mudança de legislação, da sensibilização. Não se trata de transformar a sociedade numa sociedade matriarcal, mas em algo novo, numa sociedade de equilíbrio de poder entre homens e mulheres, uma sociedade, acima de tudo, humana.
  • Comentar:

    Mais

    Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

    Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

    Mais sobre mim

    foto do autor

    Subscrever por e-mail

    A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

    Mensagens

    Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2023
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2022
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2021
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2020
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2019
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2018
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2017
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D
    105. 2016
    106. J
    107. F
    108. M
    109. A
    110. M
    111. J
    112. J
    113. A
    114. S
    115. O
    116. N
    117. D
    118. 2015
    119. J
    120. F
    121. M
    122. A
    123. M
    124. J
    125. J
    126. A
    127. S
    128. O
    129. N
    130. D
    Em destaque no SAPO Blogs
    pub