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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

O universo gay para a mulher heterossexual: curiosidade, fetiche ou universo escapista essencial?

Corria a década de noventa do século XX e eu, uma adolescente viciada em música e livros e que aspirava estudar cinema, vivia uma invulgar obsessão, uma curiosidade por um mundo particular, que não era o meu.

Desde que tenho memória, o universo homossexual masculino sempre surtiu em mim um estranho efeito apelativo. Olhando numa perspetiva histórica para esse passado, o da minha adolescência, alguns poderão justificar essa pretensa obsessão devido à obscuridade (a nível de representação artística) que os homens gays e as suas histórias tinham na época, ainda para mais num país como Portugal. Não era de todo fácil encontrar livros ou filmes em que uma personagem homossexual fosse representada e assim o pouco que encontrava, apreciava-o como se de um tesouro se tratasse.

Mas de onde vinha esta minha tara? E era uma tara, obsessão, uma curiosidade, era exatamente o quê? Durante estes vários anos nunca pensei muito em me justificar e bastava sentir-me bem a navegar naquele universo que não era o meu e no qual não estava representada, para continuar na minha senda por esses representações literárias e cinematográficas ─ a busca por uma total e completa representação daqueles que estavam num espetro afetivo tão distante do meu.

Foram precisas três décadas para finalmente me questionar e o questionamento vem porque a obsessão persiste. E se a pergunta agora se impõe é porque percebo, com alguma surpresa, que não estou sozinha. Se na adolescência eu era a rainha das cenas gays, agora eu sou um pequeno peão num gigantesco mercado. Se antes eu era a esquisita que vasculhava livros obscuros na biblioteca ou numa livraria, agora não preciso sequer de pedir, vasculhar, procurar. Há-os à farta, em vários registos, em vários formatos artísticos e de entretenimento.

E esta constatação não vem em tom de crítica. Olho em volto e falando com algumas adolescentes de agora (haverá frase com maior força para me atirar para os confins da meia idade do que esta?), percebo que também elas partilham em muito desta adoração por este universo LGBTQIA+. E o mercado obedece. Chegados à década de vinte do século XXI, vemos o entretenimento e a arte supostamente atentos e preocupados com as minorias, principalmente as minorias no que à orientação sexual e identidade de gênero diz respeito. Mas será que estão? Preocupados?

Percorrendo alguns canais de Youtube sobre este tema, é recorrente o surgimento de uma opinião interessante: todo o conteúdo LGBTQIA+ não é propriamente direcionado a um público LGBTQIA+ (e nunca o seria em exclusivo). Os conteúdos são direcionados para a fatia de público que mais os demanda, que os procura e que, sendo uma fatia gigante, é a fatia a se agradar: adolescentes e mulheres heterossexuais. E nesta obediência do mercado ao público que lhe rende, há em mim um rol de emoções algo ambivalentes. Por um lado, pergunto-me se os nossos gostos não estarão a ferir (de alguma forma) uma minoria até agora silenciada e marginalizada, por outro lado, não sinto culpa pela submissão dos mercados, por uma razão muito simples: enquanto mulher, vi durante toda a minha vida os “produtos” artísticos serem produzidos, pensados, desenhados, tendo em conta quase exclusivamente um público masculino. Mesmo aquilo que supostamente era direcionado a nós, mulheres, que nos tinha como público preferencial, era moldado sob uma tutoria masculina. E nós acabamos a olhar o mundo de uma forma muito deformada por esses óculos que não eram os nossos. Agora, ouvindo o tinir dos sinos do lucro, eles decidiram ouvir-nos a nós. Se há algo de retorcido nesta constatação, há-o certamente e não sei bem o que sentir relativamente a isso.

Na atualidade, no segmento editorial Young Adult, as novidades de livros queer são diárias, embora também as haja entre o segmento de literatura convencional, no streaming, entre filmes e séries para um público mais adolescente ou mais adulto, as ofertas também são variadas. É difícil passar mais de uma semana sem uma novidade numa das plataformas ou no cinema. E temos séries como Heartstopper (Netflix) transformada num sucesso, com milhares de fãs em todo mundo ou o filme da Amazon Prime Red, White and Royal Blue a aparecer como um dos filmes mais visionados da plataforma em questão.

E não havendo nenhum mal nisso, em se direcionar um conteúdo para um público que o quer, surge, no entanto, algumas preocupações, vindas principalmente do público LGBTQIA+:

        Estarão, nesta agora mais comum representação queer, as personagens masculinas representadas de uma forma mais heteronormativa para agradar o público feminino heterossexual?

        Haverá uma espécie de adaptação heterossexual (a vários níveis: sexual, social, cultural) de um universo que não o é, para agradar a um público específico?

        Havendo uma abundância de representação homossexual masculina, porque é que é tão difícil ainda agora encontrar uma maior representação sáfica? Será porque o público feminino heterossexual não se interessa?

        Haverá uma espécie de fetiche feminino por estas representações homossexuais masculinas?

Olhando agora para a minha pilha de livros, dos últimos que li este ano, passando os olhos pelos belíssimos Nadar no Escuro de Tomasz Jedrowski e Young Mungo de Douglas Stuart, recordando as imagens do filme God’s Own Country, um dos poucos filmes em que espetei com cinco estrelas no Letterbox ou ainda o ridículo, adolescente e adorável (filme e livro) Red, White and Royal Blue, vem a pergunta milionária: porque é que gosto disto, porque é que um universo afetivo, sexual, cultural, social, que para mim aparece como um universo fantástico (pois não lhe pertenço), se apresenta como o universo onde quero estar?

Pesquisando aqui e ali, analisando-me e aos que me rodeiam e que partilham do mesmo gosto, talvez seja possível chegar a um punhado de respostas, embora ache que uma tese na área da psicologia pudesse ser interessante, porque tudo o que disser será de índole muito superficial:

         ─ Aquilo que causa estranheza aos outros nesta identificação peculiar é na realidade a chave da explicação: identifico-me com a história de um homem gay, com a história romântica ou de superação de um homem gay porque não estou lá representada. E pensando num universo afetivo onde não se está representado, concluiu-se que não é possível estabelecer comparações.

Como adolescente, sempre fui muito insegura a vários níveis. Achava que não era suficiente em nada: no aspeto físico, na beleza, na inteligência, na capacidade de superação. Medíocre ou mediana como um todo. Suponho que esta sensação avassaladora de se estar aquém tenha moldado em muito a minha forma de ver e aceitar o mundo à minha volta. E talvez o mesmo se passe com as adolescentes de hoje em dia. E a única forma de se experienciar um mundo onde existe amor, beleza, superação e revolução, é procurando um universo onde não se esteja, onde não seja possível estabelecer nenhum tipo de confronto comparativo: ela é melhor do que eu, mais bonita, mais elegante, mais inteligente, mais capaz, mais independente, mais otimista, mais simpática, mais astuta, mais destemida.

Onde não havia elas, só eles, eu podia estar, porque não havia nenhum espelho onde pudesse ser confrontada pelo meu pobre reflexo.

         ─ Outro dos fatores de interesse é o que classifico de desconstrução de estereótipos de gênero. As figuras masculinas que tinha como referência há trinta anos eram figuras que facilmente cairiam numa comum caracterização do sexo masculino: homens que irradiavam uma masculinidade tóxica, muito machos, mesmo entre os adolescentes borbulhentos da escola, com grande dificuldade em demonstrar afeto e que criticavam fortemente quem (de entre eles) o fizesse. O gesto era comedido, a não ser que se estivesse no campo da abordagem sexual, onde aí era dominante, mais agressivo. Tudo o que era da ordem das emoções era maricas, efeminado, coisas de gaja.

No entanto, num universo onde não havia mulheres para se dominar, submeter, mostrar superioridade, esses estereótipos de género eram subvertidos, quebrados. Pegava em Maurice de E. M. Foster e encontrava Maurice dominado por uma afeição, um amor por Clive, que não lhe permitia uma expressão física desse afeto, e encontrava um tipo de homem que não existia na minha realidade. Um homem que não tinha medo das suas emoções, que mesmo se sentido ameaçado pelos seus sentimentos impossíveis, decidia ir contra a corrente, ser aquilo que o invadia: desejo, afeto, carinho, amor.

Esta quebra, subversão de uma construção de gênero acabou por ser, para mim, enquanto adolescente, uma das principais motivações para a procura daquele tipo específico de objeto artístico. O que ali se encontrava era uma suavização do que era áspero, bruto, empedrado. Para mim, se pensasse em igualdade de gênero, era nisso que pensava: alguém capaz de sentir e demonstrar o que sentia para além da convenção, alguém capaz de chorar como eu.

         ─ Por último, o que aquele universo trazia e era de difícil replicação num qualquer outro universo era a batalha e superação daquilo que era proibido, criticado, mesmo que o protagonista estivesse sujeito a injúrias por ser aquilo que era.

Grande parte da literatura gay e lésbica da minha adolescência estava focada precisamente no conceito base do crime/proibição/pecado/censura e crítica social. Aquelas pessoas ali retratadas eram, só por sentirem paixão/desejo/amor por alguém do mesmo sexo, a face do crime e um gesto de afeto era uma transgressão. Assim, aquelas demonstrações afetivas ali retratadas tinham uma valoração diferente de qualquer outra que pudesse ser demonstrada por um homem heterossexual por uma qualquer mulher. Não havia no meu universo heterossexual qualquer possível paralelo com aquilo, pois nem eu nem nenhum homem heterossexual teria de superar tais obstáculos, ver as suas demonstrações de afeto serem consideradas nojentas ou criminosas, alvo de escrutínio público, sujeitas a sanções. O peso do meu afeto heterossexual nunca poderia ser tamanho, tão extremo, tão evidente. Tão imenso. Havia assim um elemento épico que não encontrava em mais lado nenhum, a não ser naquele universo.

Em suma, a possível identificação, mas sem elementos de comparação, a subversão de certos estereótipos de gênero, a suavização da masculinidade e o elemento épico, sem paralelo na minha vida, serão, os elementos que mais facilmente encontro como justificação de uma preferência literária/artística e de entretenimento. Talvez se tivesse sido uma adolescente carregada de auto estima, as minhas leituras tivessem sido outras. É bem possível. Ou talvez não.

Depois deste pequeno exorcismo, desta psicanálise do meu eu adolescente, deixo apenas uma referência à questão do fetichismo. Não me parece que esta acusação de fetichização tenha fundamento, no sentido em que, tanto no entretenimento como na arte no geral procuramos pontos de fuga, mas também pequenos lugares de identificação. O que nos leva à escolha de um livro, de um filme para ver ou até mesmo de uma exposição de arte, são os lugares de identificação, mesmo que esta aconteça através do desconforto, da desorientação. Há sempre um Eu a procurar um buraco de fechadura para espreitar.

O nosso Eu é dominante, mesmo quando pretendemos subjugá-lo e esvaziarmo-nos dele. O que quer dizer que, de certa forma, ou chamamos outra coisa a essa procura do nosso Eu naquilo que nos rodeia ou então teremos de classificar toda e qualquer relação com a arte e o entretenimento como fetichista.

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God's Own Country, de Francis Lee (2017).

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Young Mungo, de Douglas Stuart (2022)

Este meu corpo torto

O corpo como elemento dissociado do Eu, como um desdobramento material do Eu, mas um desdobramento caótico, aleatório – um reflexo distorcido da verdade.

Pensei no corpo nestes trâmites durante muito tempo. O meu corpo estava francamente aquém do que eu achava que ele deveria ser, o meu corpo não era uma materialidade em condições da minha personalidade.

Claro está que toda esta minha crença era uma perfeita parvoíce, porque percebo agora, passados os anos, que sou um produto em constante construção pela vivência social, pela navegação deste meu corpo entre este mar de outros corpos. O meu Eu fundou-se na vivência social de um esqueleto coberto de músculos, veias e carne.

Eu sou aquilo que o meu corpo é.

Eu sou da forma como me veem.

 As minhas inseguranças, a escolha das minhas lutas, as mais ínfimas decisões do dia a dia – olhar alguém nos olhos, decidir iniciar uma conversa, ter coragem para me levantar depois de uma queda aparatosa – todas estas banalidades provêm da vivência social deste meu corpo durante estas primeiras quatro décadas.

E se depois de uma adolescência de profunda aversão por mim própria, aversão pelos cantos, becos e linhas oblíquas desnecessárias deste corpo, consegui chegar ao patamar da escadaria da tolerância…

Enfatizo que tolerar não é aceitar.

Percebo que o meu entendimento do que será um corpo perfeito está enraizado em preconceitos, traços culturais, publicidade e marketing, parâmetros quer inconcebíveis como impraticáveis – um corpo perfeito deveria ser somente um corpo funcional e saudável –, mas apesar dessa perceção, não há aceitação possível do que me calhou na rifa. E todas as campanhas de body positivity me soam a falsidade, a um prémio de consolação para o atleta que ficou em último lugar na corrida.

Perceber que se fundou um edifício em alicerces defeituosos não faz nem o edifício nem os alicerces desaparecerem. Eu sou fruto da maneira de se pensar desta sociedade, para o bem e para o mal e quanto a isso não há nada a fazer. Posso ter consciência dos bastidores, mas a peça continuará a ser a mesma a que toda a gente assistirá.

E, quando o meu corpo entra em rota de colisão com a minha vontade, quando se alarga excessivamente, quando descai, quando me esfrega na cara os sinais óbvios de envelhecimento, de entortamento, quando me grita que não mando nele, que quer ser livre, decorado de adiposidade, de cabelos brancos, olhos vesgos, dentes tortos, pele borbulhenta, enraiveço-me e castigo-o, mostro-lhe a sua insiginificância.

E se com o tempo consigo encontrar nos outros beleza naquilo que não é óbvio, naquilo que foge ao padrão, encontrar beleza no que antes me parecia abjeto, não me permito tais lisonjas comigo própria, porque edifiquei-me na impossibilidade de alcançar o belo.

Eu sou a falha, a fenda, o Frankenstein da materialização física, o Mr. Hyde do Dr. Jekyll e não há perdão possível, nem campanha de sensibilização positiva que me faça olhá-lo de diferente forma.

Este meu corpo torto sou Eu. Este meu corpo oblíquo não é um duplo caótico e desprezível do meu verdadeiro Eu.

O meu Eu gerou-se no mesmo ventre, gêmeo univitelino deste corpo torcido.

Protege-me daquilo que eu quero

Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?

Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.

Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.

Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.

E no precisar parece que não há arte. 

Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.

Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.

Parar.

Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.

Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.

Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.

Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.

Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…

não sei se,

             sozinha,

consigo lidar com tudo isto.   

Amar pelos dois

Não conheci o meu avô paterno, mas conheci desde cedo o seu legado, a herança do abandono, do desamor, da tristeza instalada no peito de uma mulher com um filho bastardo nos braços.

D. Sancho I levou erradamente o cognome de O Povoador. Erradamente porque, a bem da verdade, não terá havido maior povoador do que o meu avô paterno. Um D. Juan da aldeia, que fez filhos a torto e a direito, efeitos secundários indesejáveis das suas aventuras sem responsabilidades acrescidas, até se ter «metido» com uma menor e ter acabado casado. Fora desse laço sagrado do casamento, deixou umas quantas mulheres desenganadas, de vidas já de si medíocres reduzidas a um nada, depois daquele presente envenenado com o qual as presenteou. Depois disso, um vazio.

A minha avó era já uma mulher adulta quando engravidou deste homem e, segundo ela, namorou com ele seis anos e eram muitas as juras de amor.

Depois do abandono, da humilhação familiar de ter no ventre um filho «sem pai», ainda assim ela persistiu no seu amor por aquele ser humano. Persistiu no amor e nas desculpas. Não terá existido homem nenhum no mundo tão intrinsecamente machista como a minha avó. Segundo ela, o meu avô era um pobre desgraçado tentado pela perfídia sedutora das mulheres. Todas as outras «se meteram debaixo dele» e ele, um pobre coitado incapaz de resistir a tão maliciosas tentações. Toda uma classe de homens reduzida a um estereótipo pouco abonatório - um ser incapaz de controlar os apetites caprichosos do corpo, vítima da luxúria feminina, um ser pré-histórico no que diz respeito à empatia, capacidade afetiva e intelecto.

A minha avó não teve mais nenhuma presença masculina na sua longa vida (para além da do filho). Nos seus pertences guardava religiosamente a fotografia daquele homem que lhe dera um filho, mas que nunca lhe dispensara um tostão ou o que fosse para o ajudar a criar. Os anos passaram, ele morreu (relativamente jovem) e o culto dela por ele não esmoreceu. Talvez a morte dele tenha mesmo ampliado essa idolatria. E o afeto dela chocava de frente com o desprezo em semelhante proporção que o meu pai sentia por aquele mesmo homem.

Anos passados, também ela morreu. Ela e o seu amor injustificado pelo meu avô.

Depois de anos sem perceber este amor unilateral da minha avó, sem perceber aquele amor incondicional que - qualquer cego poderia ver - não tinha razão de ser, décadas depois de conhecer a sua história, anos depois da sua morte, finalmente percebi.

Olhando-me ao espelho, vendo o filme de terceira categoria da minha própria vida, compreendo-a perfeitamente.

A verdade é que passamos a nossa vida num exercício de fé. Fé em nós próprios, nas nossas capacidades, na nossa resiliência, na nossa ambição e persistência. E fé nos outros, em não nos deixarem cair, em nos amarem, em não desistirem de nós.

É esta fé que nos leva ao dia seguinte e não propriamente a concretização do objeto primário da nossa fé, aquilo a que chamam de forma singela de sonho.

Talvez nada mais restasse no horizonte da minha avó que não fosse amar a imagem idealizada daquele homem. Era isso ou enfrentar a realidade: ele era um canalha que se aproveitara dela, de outras e seguira caminho sem remorsos, ignorando um filho, muitos filhos, ignorando os sentimentos de uma mulher, várias mulheres, em situações de vida precárias, difíceis, empobrecidas e, depois da sua passagem ciclónica, ostracizadas pela sociedade, família, por terem acabado naquela situação - grávidas, mães solteiras, abandonadas, os seus filhos perfeitos, também eles, abandonados.

Do desprezo que cheguei a sentir por aquele amor que ela nutria por um ser humano de tantas e tamanhas atitudes desprezíveis, da abominação, da afronta, de todas as justificações dela dos comportamentos dele, agora entendo.

A nossa felicidade, a bruma mágica que envolve a nossa existência, não precisa de ser real, de ter os contornos do mundo físico, do espaço/tempo, do aqui e agora. Basta apenas que se revista de uma envolvente verosimilhança aos nossos olhos, já meios míopes de tanto fitar continuamente tamanha dolorosa realidade.

Se for preciso acreditar em capacidades inexistentes, em projetos utópicos, em vidas paralelas, em deuses benevolentes, em ficções hollywoodescas, em amar pelos dois... que assim seja!

O real está no mundo pessoal imaginado de cada um de nós.

 

 

 

Menino malcomportado

Não haverá nada de pior do que nos vermos refletidos, nos nossos piores aspetos, nos outros. E essa reflecção poderá ser física ou comportamental, ideológica ou anatómica.

Imaginem sentir repulsa por alguém que se nos apresenta à frente para, logo a seguir, num arrepio que nos percorre a espinha, perceber que aquilo que nos repulsa, também o temos em nós e automaticamente repulsará os outros. 

Os meus olhos são o meu calcanhar de Aquiles. Nasci com miopia acentuada. Nos meus primeiros anos, eram os óculos «fundo de garrafa» que me perturbavam. Pensava que, quando me pudesse ver livre dos óculos, seria o paraíso na terra. Automaticamente, viraria uma ninfa.

Aos doze anos esse dia chegou. Os óculos ficaram para trás, relegados para o conforto do lar, longe da vista do resto do mundo. Acho que só nessa altura percebi que o meu olho direito era praticamente cego, ambliope. Passei a usar uma lente de contacto no olho bom, o olho esquerdo, que ainda assim tem 9 dioptrias de miopia. A verdade é que, como nunca tinha visto melhor do que aquilo, nunca tinha dado muita importância ao problema em si, mas mais ao aspeto estético do uso dos óculos.

A euforia de não usar óculos fez-me esquecer por uns tempos aquele que veio a tornar-se o elemento perturbador da minha cara - o estrabismo do meu olho quase cego.

O meu olho cego divaga, conduz-se segundo a sua própria vontade, parte das vezes recusa-se a seguir o seu amigo. Quer ser independente, viver por si próprio. É cheio de manias e de astúcia. O oftalmologista reencaminhou-me para um optometrista há uns anos. Semanas de sessões quase diárias para observar o comportamento do menino, para perceber se a sua teimosia errática era operável ou não. Pois o que faz o menino quando o observam? Comporta-se impecavelmente.

O meu estrabismo não era suficientemente consistente para ser operável. Tinha dias em que estava mais estrábica, outros em que me apresentava normal, sem desvios. O meu olho destrambelhado exigia que o aturasse tal como ele era, que o amasse assim.

Dessa fase, passei para uma fase em que tomei medidas para domar o menino malcomportado. Sei onde me devo sentar se quero falar com alguém, sei que exercícios fazer para lhe exigir obediência quando ele acorda mais mal disposto.

E embora hoje em dia consiga brincar com o meu problema, há sempre situações que me confrontam com a estranheza ou mesmo repulsa que poderei estar a causar nos outros. Situações que me relembram, que não deixam o menino malcomportado cair no esquecimento.

Quando vejo alguém com estrabismo, sinto estranheza, dificuldade em olhar naturalmente essa pessoa, mesmo sabendo que com toda a certeza já fiz alguém sentir-se exactamente assim – desconfortável.

E por vezes não é sequer necessário ser confrontada com o estrabismo alheio. Alguém fará questão de me lembrar as minhas fraquezas. E ainda bem. No fim das contas, eu sou quem sou, comporto-me como me comporto, penso como penso, porque, para além de tudo o resto, sou também estrábica, domadora de um olho cismado e opinioso, mãe de um menino malcomportado.

Whats my drug of choice?

Em adolescente ouvia esta música e vibrava sem perceber o seu essencial sentido. A tormenta da voz chegava, mesmo sem o entendimento da tormenta da letra.

Alice in Chains - Junkhead (Dirt - 1992)

Estudei num meio artístico, de à vontade em experimentar coisas diferentes, mas a minha educação ou tão simplesmente a minha personalidade desajustada do meio onde estava inserida, tornara-me rígida, muito utópica na maneira de fruir as coisas. Lembro-me de dizer a um colega de faculdade que viver, amar, deveria ser experiência narcótica suficiente, que a vida tinha mecanismos para nos levar ao êxtase sem necessidade de adicionar qualquer substância extra. Esta lembrança faz-me sorrir e praguejar sozinha.

Assim, no meio de um louco, desgovernado e típico ambiente adolescente e pré-adulto, eu era uma exemplar exceção. Eu não bebia, não fumava e não fodia. Não frequentava as festas deles porque não há nada pior do que estar sóbrio no meio do delírio alcoólico ou narcótico. Honestamente, arrependo-me. Sempre fui de uma ingenuidade confrangedora.

Hoje, a caminho da meia idade, percebo que todos temos uma qualquer droga de eleição, por muito obscura e distorcida que ela possa ser. Mesmo quando a vemos com olhinhos inocentes e não a chamamos por droga e tal apelido nos afronta.

Nos tempos que correm, confinados em casa ou tentando seguir com uma rotina embrulhada em medos, onde ações básicas, de elementar necessidade, se tornam em manobras de risco dignas de um filme de ação, rimos dos memes da velhinha que pede vinho à janela num cartaz, rimos das piadas da quarentena, dos excessos cometidos para acalmar este desassossego e medo interior. Excesssos alimentares, excessos alcoólicos. O consumo de álcool tornou-se uma droga aceitável, o medicamento do apaziguamento do desconforto que ninguém criticará, tornou-se droga fashion e fotografável.

Não por estas características, mas pela minha mentalidade muito pouco transgressora, esta é a minha droga de escolha.

É como uma amarra que se solta, mas sem que nos tornemos completamente desamarrados, uma descompressão que se sente, sem que se deixe de estar sufocado. Claro está que beber será como o uso de qualquer outra droga. Os excessos levarão, inevitavelmente, a uma adição em que o prazer é substituido pela necessidade. 

Enquanto houver prazer, o mundo será, por um par de horas à noite, um sítio menos perigoso, haverá esperança, uma solução ao virar da esquina.

E entre gargalhadas, ideias malucas, mas surpreendentemente fantásticas, tomarão forma, ganharão vida e, com alguma sorte, haverá na sobriedade das restantes 22 horas, força suficiente para as colocar em prática. 

 

A ruga

 

 

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Entre as sobrancelhas, acima da cana do nariz, um vinco na pele em forma de Y invertido — a lembrança dos milhares de vezes em que franzi o sobrolho (de assombro, de raiva, de medo, de surpresa, num gesto reflexo de proteção dos olhos contra os raios solares). A repetição dos dias, a repetição da rotina gravada num vinco geométrico na pele.

 

Agora, quando me vejo ao espelho, parece que nada mais resta no meu rosto que não seja aquilo, aquela evidência da passagem do tempo. E não são as questões cosméticas que me afetam, me desmoralizam. O envelhecimento é algo intrínseco à vivência humana. Por mais que se estique aqui, se encha acolá, a passagem do tempo está gravada no corpo, mais não seja através desses processos que a tentam reverter, transformando corpos velhos em quimeras.

 

Mas a minha ruga não é um sinal de envelhecimento. A minha ruga é uma ampulheta, um cronómetro que me escancara na cara o esgotamento do meu tempo. A minha ruga é um riso de escárnio pelo meu descaramento juvenil, pelos projetos, os sonhos que arquitetei na minha cabeça, numa altura em que a vida parecia uma longa autoestrada, interminável, à minha frente. A minha ruga é o sinal do meu fracasso e da minha impotência. A minha ruga é o percurso de costas que faço contra a parede, encurralada pelo tempo.

 

Tic-tac, tic-tac, o tempo esvai-se.

O mundo lá fora

Escrevo e escrevo-vos quase todos os dias. Não há nada de altruísta neste meu ato. Escrevo para me sentir menos só, como se falasse diretamente convosco sobre aquilo de que gosto, aquilo que me atormenta (mas apenas aquilo que é pronunciável. Os impronunciáveis não pertencem aqui. Não pertencem a lado nenhum). Transformo-me, aos vossos olhos, num ícone, num avatar que desfia palavras, num ser invisível, virtual, que existe apenas em forma de palavras e frases. Olhando para o meu avatar, poderão questionar-se se aquele meu grito (quadro de Munch) é um grito de desespero, de frustração ou antes um grito de libertação. Mas mesmo que vos apresente a minha fotografia, que daí poderão concluir? As minhas feições assimétricas, o meu nariz grande, os meus olhos míopes não vos revelarão os meus segredos. Com imaginação poderão tentar construir na vossa cabeça um personagem de ficção que na realidade não existe, mas a imaginação é isso, a massa consistente que tapa as fendas abertas de uma parede em ruínas.

 

No entanto, no mundo lá fora o erro repete-se. O corpo que sai de casa, cumprimenta este e aquele, percorre os corredores de supermercado, não será mais real do que o avatar virtual. As banalidades do dia-a-dia são incapazes de fazer descer a máscara, algumas conversas trocadas ao vivo terão menos substância do que os comentários de um qualquer blog. E, tanto umas como outras (as conversas virtuais e reais) são dirigidas não a mim, mas a um ser imaginado, um fantasma primo em terceiro grau da pessoa real. E de tudo isto, instala-se uma incompletude permanente. O virtual tenta encaixar no real para formar uma peça completa, mas, ainda assim, o puzzle continua incompleto, com buracos pelo meio.

 

Mas a vida deve ser isto (sem certezas): uma mente encerrada num corpo que ainda aprende (e fá-lo-á até morrer) a expressar os desígnios do seu prisioneiro, ainda aprende a comunicar com todos os outros encarcerados que o rodeiam.

 

Eu, por mim, continuarei a tentar.

 

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Motivos, desculpas, bitaites

As razões de uma exposição pública através da escrita nem sempre serão nobres. Mascarada, não raras vezes, de partilha de opinião, usufruto da alcançada democratização do direito à ideia própria, a escrita em espaço público (redes sociais, blogues) não passa, muitos serão os exemplos, de uma necessidade de valorização pessoal, uma procura de reforço positivo ou, numa oposição, uma provocação que pretende desencadear reações menos benevolentes por parte de quem lê/comenta. Muito se poderia discorrer sobre os conflitos que habitam dentro de cada um de nós, seres humanos, para sentirmos esta necessidade de expressão, seja pela procura da confirmação ou pela provocação.

 

Eu não sou diferente. Não sou diferente desta massa de gente que larga bitaites diariamente na internet. Alguns bitaites refletidos, outros bitaites impulsivos que não serão propriamente caraterísticos, na vida do dia-a-dia, de quem os escreve, mas que deixam uma mancha de fúria, ódio, causando um sentimento assustador em quem os lê. Apenas fui mais recatada. Até hoje. Mas depois do impulso e antes de debitar estas palavras no computador, tentei perceber o que me move, as razões implícitas à necessidade de partilha das minhas ideias. E não há nada de nobre nas minhas razões. A solidão será o mais forte dos motivos. Falar sozinha, falar com o cão, discorrer em pensamentos durante horas, acaba por servir quase sempre os meus propósitos. Quase sempre, mas nem sempre.

 

Todavia, esta coisa da solidão tem muito que se lhe diga. Embora desterrada numa localidade pequena, não vivo só, falo diariamente com pessoas, mas não daquilo que gostaria de falar. E claro, a suposta solidão nada mais será do que um certo egocentrismo traduzido numa necessidade de que me ouçam, mesmo que este meu «grito» ecoe por todo lado e seja ignorado. Para mim, o ato de gritar encerra em si valor que chegue. Uma nova forma de falar sozinha, mas com a impressão de ter uma enorme plateia interessada.

 

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