Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Excisão da empatia

Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.

Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?

Precisamente… tudo.

Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.

Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.

No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.

E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.

No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.

E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?

E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.

Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.

Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.

Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.

Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.

Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?

E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.

E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?

Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?

catarina.png

Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues

 

asbenevolentes.jpg

As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007. 

Teoria geral da relevância humana

«Quem são estas pessoas? Serão pessoas ou serão monstros?»

Navegando pela internet, pelas redes sociais, caindo em queda livre nos comentários de uma qualquer postagem, não será difícil a frase sair-me da boca. Uma pergunta para a qual sei a resposta, mas que ainda assim se escapa pela estupefação, embora os comportamentos, as palavras cruéis nada tenham de novo.

Ontem via no Instagram um desabafo de uma tradutora/promotora literária, que sigo nas redes. A pessoa em questão foi ao lançamento do livro «No meu Bairro», de Lúcia Vicente/Tiago M. e foi “apanhada” no turbilhão de ódio de uns quantos grunhos que por lá apareceram a manifestar-se.

Ora, desta frase anterior, corrijo a palavra “grunhos”, porque embora a tendência seja classificar o comportamento inadequado de alguém de uma forma mais reles, com adjetivos depreciativos, essa classificação como que isenta o outro de responsabilidade dos seus atos. Nunca se trata de monstros a fazer coisas monstruosas, tratam-se de seres humanos como eu a fazer coisas humanas, embora ações que são nutridas pelo ódio e pela falta de empatia. Corrijo ainda a palavra “manifestar-se”, porque toda a gente sabe que aqueles homens que invadiram um lançamento de um livro com um megafone não se estavam a manifestar, não reivindicavam nada. A natureza daqueles atos era outra.

Bem, o post da H., a tradutora/divulgadora literária, mostrava uns quantos screenshots de comentários sobre ela, debaixo de uma fotografia que lhe foi tirada por um dos manifestantes durante esse lançamento literário, onde o seu aspeto físico, a sua cor da pele eram usados como forma de enxovalhamento na forma mais cruel que se possa imaginar. Quando não há argumentos, há insultos e ali havia de tudo: racismo, xenofobia, misoginia, masculinidade tóxica (que de tão tóxica que era, envenenava qualquer resquício de empatia que aquelas pessoas poderiam ter dentro de si). Por momentos, aquilo que supostamente tinha movido aquelas pessoas a se manifestarem desaparecia. Sobravam apenas as palavras cruas e duras: gorda, mestiça, brasileira, fenótipo assim, fenótipo assado.

E ao ler aquilo, ao pensar como H. se deveria estar a sentir ao ler aquelas palavras, ao me sair da boca a frase «Que pessoas são estas que dizem estas coisas de uma forma tão cruel e com tanta ligeireza?», caiu-me no colo a contagem das vezes que tinha pronunciado a mesma frase num mero par de dias: comentários maldosos num grupo de partilha de leitura de livros, onde o que me pareceu um problema técnico da página foi classificado por algumas pessoas nos comentário como má vontade da administradora do grupo, logo ali prontamente classificada de desocupada, desempregada, divorciada, mal resolvida (com a carga sexual que tem sempre de ser trazida ao barulho e com todas as piadas foleiras associadas). Umas horas antes, falava com uns amigos americanos que descreviam como tinham sido enxovalhados por um fulano anti-vacinas quando, num grupo de expatriados, tinham apenas divulgado o calendário de vacinação da Covid 19 para maiores de 60 anos. Insultos e ameaças que os deixou perplexos pela desproporção da resposta a uma mera divulgação do SNS. Comentários à notícia do julgamento de Mamadou Ba, comentários à notícia de abertura de uma livraria feminista em Lisboa. Pequenos exemplos, numa longa lista, onde eram fáceis de perceber os tópicos que mais alarves chamava para os comentários. Palavras escritas para fazer doer, palavras como pedras, palavras que pretendiam humilhar pela brutalidade.

E ao ler centenas de frases pronunciadas no mundo virtual, escoltadas pela segurança de não terem sido ditas «cara a cara», mas sob a proteção da distância, de dedos que dedilham teclas num aparelho, ainda assim vem a pergunta: «Quem são estas pessoas? E porque é que dizem estas coisas?» 

E a resposta não é bonita, porque é óbvia. Não há qualquer grandeza na descoberta da Verdade, não há um Nós vs Os outros, Humanos vs Monstros. Aquelas pessoas que ali falam apenas procuram uma coisa, que quase todas as pessoas no mundo procuram também. Mas ao invés da procura ser interior ou junto daqueles que os rodeiam, há como que um estrebuchamento perante aquilo que não conseguem entender, perante aquilo que é acessível, mas quase nenhum ser humano consegue apreender:

 A nossa relevância no mundo não tem de ser espalhafatosa, não tem de ser notada pelos outros milhões de habitantes do planeta. O motor da nossa existência, aquilo que nos faz levantar de manhã e ter coragem de sair da cama, aquilo que leva milhares de pessoas a correrem riscos, a não desistirem, a procurarem segurança, alimento, amor, não tem de ser um evento global aplaudido e notado a uma escala nacional/internacional. E não se entender isto  a insignificância de todos nós , que apenas ganhamos importância junto daqueles que nos amam, através dos nossas ações, que, com sorte, nos podem fazer perdurar na memória daqueles que ainda hão de vir, não entender esta dado básico da engrenagem do mundo só nos traz solidão.

Aquela pessoa que destila ódio nos comentários está só. Aquela pessoa sabe que aquelas suas palavras amargas gerarão respostas e sabe ainda que se lá escrever um comentário «do bem», cheio de otimismo, positividade, alegria, a interação que irá granjear será nula. O ódio revolta, espicaça, gera contacto. O Bem, aquilo que se espera do bom ser humano, é como um dado adquirido, não é notado, questionado, aplaudido ou motivado. E, de uma forma retorcida, aquelas pessoas são vistas, são notadas, ficam momentaneamente menos sós. E no meio de muitas respostas amargas àquele que inicialmente insulta, vêm também aqueles que, como ele, procuram o seu lugar no mundo, ser relevantes, justificar a sua existência.

Os que odeiam conhecem-se, formam um grupo de ódio, odeiam juntos. E a solidão parece menor, encolhe um pouco e odiar será combustível existencial como outro qualquer.

Quando leio comentários assim, imagino de imediato aquela pessoa que destilou ódio, a que está do outro lado, numa ânsia a olhar para o telemóvel, aguardando o apito sonoro que o alerte da chegada de uma reação às suas palavras. E, estranhamente, sinto pena.

Com as redes sociais, é fácil sermos apanhados pela aparente grandeza da vida dos outros. O que fazem, onde vão, quem os rodeia, como são bonitos, o que conquistam, como são aplaudidos. Acontece-me a mim. Ao seguir aqueles que me são referência nas áreas que me são mais queridas, não há como não sentir o toque da insignificância, não há como a minha vida não ser vista sob o projetor da mediocridade. Mas ainda assim, há que respirar fundo e perceber que aquilo que me poderia fazer sentir relevante não virá através da diminuição dos outros, dos feitos dos outros, das palavras e ações dos outros. E talvez a relevância esteja aqui mesmo ao lado, no amor que poderei dar e receber daqueles que me são próximos, em existir com dignidade, criar memórias bonitas no meu filho, porque não é preciso um auditório cheio a aplaudir para a minha vida ou a de qualquer outra pessoa fazer sentido.

No fundo, ainda não sabemos lidar com aquilo que a evolução das espécies nos trouxe, enquanto espécie humana. Esta consciência de nós próprios, esta auto perceção da nossa pequenez, de sermos um entre milhões, num pequeno planeta num universo sem fim à vista, a aleatoriedade da vida, todas estas coisas fez-nos criar deuses, levou-nos à arte, transformou-nos em seres sociais, parte integrante de uma rede de ligações familiares e de amizade, fez-nos buscar a beleza, procurar o desconhecido, mas nenhuma destas coisas conseguiu ainda eliminar por completo a necessidade das perguntas:

«Qual o sentido da minha vida?»

«O que faço aqui?»

«Qual a minha relevância?

»Porquê continuar?»

E, sem qualquer espanto, compreendo que aqueles que odeiam, também eles, procurem todos os dias, incansavelmente, resposta para estas mesmas perguntas.

Isso… e colmatar a solidão.

Red, White and Royal Blue

Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.

Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.

Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.

Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.

Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.

Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.

E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.

Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.

E realmente é:

Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.

E eu adorei.

Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.

Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.

Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.

Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.   

Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.

Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.

Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.

Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.

Red, white and royal Blue

Realizador: Matthew Lopez

Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.

Amazon Prime

Melanina

mbappé.jpeg

Num direto televisivo de um canal argentino neste início do mundial no Qatar, um grupo de adeptos argentinos, que rodeava o jornalista de serviço, começou a entoar um cântico que rapidamente se demonstrou ser um cântico racista e transfóbico dirigido à seleção francesa de futebol masculino.

Um cântico ensaiado, estudado, com direito a rimas e tudo. Uma pequena obra de arte poética racista.

O repórter, percebendo o conteúdo lírico da arte em questão, tirou-lhes a antena, o microfone. Mas tarde demais.

Apanhando a notícia do sucedido em órgãos de comunicação portugueses, surpresa das surpresas, a maioria dos comentários, embora recriminassem o sucedido (antagonismos com a seleção francesa justificam esta benevolência), justificavam os cânticos com um simples: «É mau, mas é verdade.»

No geral da ofensa, o facto dos jogadores franceses serem maioritariamente negros, era sinónimo de virem todos de Angola (não serem franceses). No entanto, embora os cânticos visassem a seleção francesa, tinham como alvo particular o jogador Kylian Mbappé. Dele, referiam o facto de os pais serem de origem nigeriana e camaronesa e dele ainda assim ser considerado francês. Faziam ainda referência ao rumor do jogador namorar com uma mulher transsexual (em termos que nem uma criança do primeiro ciclo acha adequados).

Uma aberração ofensiva que ainda assim ecoava positivamente por estas bandas. Lia aqueles comentários e pensava como a distribuição de melanina tinha um tal poder de limitar fronteiras, excluir cidadãos, ostracizar uns e, paradoxalmente, incluir outros sem reservas. A melanina tinha o poder de incluir ou excluir alguém destas comunidades imaginadas que são os nossos países (países ocidentais), como se países, comunidades fossem clubes privados com regras dúbias, bares de jogo clandestino numa cave bafienta.

Mbappé nasceu em França, é cidadão francês. Os pais nasceram fora de França e isso parece ser fator de preocupação para os racistas de serviço. No entanto, o que é isso de ser daqui ou dali? Até onde tem a árvore genealógica de recuar para alguém ser considerado de determinado sítio?

Se o teu primo branco nasce em França dos teus tios portugueses, foi registado em França, tu dizes que ele é francês, mas se Mbappé nasce em França, filho de pais nigeriano e camaronês, tu tratas de o excluir automaticamente do país França (um cidadão de lado nenhum ou um cidadão de uma geral África).

Claro que não há preocupação com os familiares diretos de Griezmann (também jogador da seleção francesa). Griezmann (graças a deus) foi presenteado com uma menor distribuição de melanina. Interessa lá saber de onde diabo vieram os pais. O caso não se coloca, mesmo que os ascendentes do jogador não sejam franceses.

Há uma exclusão automática de uma comunidade baseada unicamente no tom de pele. E se te perguntam: és de onde? E respondes França, Portugal, Espanha ou Itália, dependendo da tua melanina, pode surgir a pergunta sequente à tua óbvia resposta: Mas de onde és MESMO?

E o tempo passa e isto é tudo tão (e cada vez mais) estapafúrdio. Não se coloca a questão para estes adeptos dos jogadores terem ou não qualidades como jogadores, na elaboração dos seus cânticos de apoio (?) à sua seleção. No meio de uma falta de noção e empatia (numa quase psicopatia), seguem a opção (que não deveria sequer existir) da ofensa racial, da ofensa sexual, reduzindo o adepto de futebol a um ser grunho estereotipado.

Mbappé, devido a ofensas racistas no passado, tinha já colocado a possibilidade de abandonar a seleção francesa. E assim são os bullies, sabem onde apertar para fazer doer mais. Perpetuam um ciclo de ofensas, solidificam (mesmo que inadvertidamente) movimentos nacionalistas racistas e xenófobos, deixando para trás um mundo onde nenhum cidadão empático gostaria de viver. Um rasto de destruição.

E mesmo dentro de portas dessa comunidade, quantos seres humanos não passaram de incluídos a excluídos dependendo dos resultados das suas atividades?! De português de gema a africano de lado nenhum se o golo entra ou não entra, se foi decisivo para a vitória ou se, pelo contrário, foi decisivo para a derrota.

E baseamos as fronteiras de um país, a pertença a uma comunidade nestas migalhas de coisa nenhuma, fazendo cidadãos viverem uma vida de ostracismo, sentimento de não pertença, tudo porque a melanina não se enquadra na nossa paleta de cores pré estabelecidas.  

Num evento desportivo já inqualificável por falta de adjetivos adequados, isto é apenas mais um parágrafo no Mau Demais.

Sigmund Krähe renascido

O mundo é um lugar imenso e simultaneamente uma pequena vilória provinciana. Sabemos o que certas celebridades do outro lado do mundo comem e bebem, de que gostam, de que falam, com quem fazem amor e a quem odeiam e sabemo-lo como qualquer bom coscuvilheiro da aldeia. Mas, num paradoxo com esta aparente proximidade (de um eu, tu e eles, transformados com facilidade num nós), é possível que alguém se esfume sem deixar rasto, que alguém que ontem era, hoje já não o seja. É possível que um Ele se mantenha um Ele, longe e teimosamente afastado de Nós.

Sigmund Krähe é um compositor alemão. Quando digo é, no presente do indicativo, estou a dar um grande salto de fé assumindo que ainda vive, que respira entre nós.

Até há um ano e tal atrás, seria possível encontrar no youtube centenas de composições suas, num canal em nome próprio, que não cheguei a conhecer. A maioria das composições são para órgão de tubos – dramáticas, obscuras, mas não demasiado rebuscadas. Algumas pecarão mesmo pela simplicidade, assemelhando-se a bandas sonoras de filmes de mistério e fantasia. Demasiado sintetizadas, num registo já ouvido? Talvez. Mas ainda assim com um travo épico que, pessoalmente, me fascina.

Nada de novo no mundo. Um artista a usar uma plataforma global para difundir a sua música. Um nome associado a centenas de registos musicais e nada mais.

Até há um ano. De um dia para o outro, Sigmund e a sua música desapareceram. O canal desapareceu do Youtube, apagado pelo autor ou pela plataforma. A partir daí começa a especulação: o que acontecera a Krähe e à sua música?

Como pode alguém ser e não ser? Ser apenas um nome, ser centenas de peças musicais, ser ouvido por milhares de pessoas, ser comentado, apreciado e também desdenhado e, num segundo, deixar de o ser? Deixar de ser para Nós, deixar de existir enquanto ser global, enquanto artista, desvanecer como um Houdini?

Uma das minhas professoras de mestrado, falando dos escritos dos alunos mantidos na «gaveta», diz-nos provocadoramente que aquilo que fazemos não é arte. E não fala da qualidade do que escrevemos, pois desconhece se a temos ou não ou sequer se tal coisa, a qualidade, é coisa quantificável.

Do que ela fala é da necessidade de haver uma comunidade que usufrui, que está envolvida na experiência, no ritual de fruição de uma peça de arte. Sem o outro não há arte.

Sigmund Krähe tinha o outro, o seu público, fazia arte, mas decidiu (decidiram por ele, morreu, enlouqueceu, aborreceu-se?) subtrair o estatuto de arte àquilo que fazia. Desaparecer com tudo. Sem o seu público, acabou-se a arte.

Acabou-se?     

Bem, muitos dos seus seguidores tinham guardado uma substancial parte das suas composições e, chocados com a descoberta do canal apagado, com o passar dos dias e nada acontecer (um regresso noutro canal, noutra plataforma, qualquer coisa), decidiram criar canais para fazer reupload das músicas que tinham guardado para usufruto pessoal.

Um ano passado, são vários os canais com a música de Krähe e ninguém a vir reclamar direitos autorais da mesma. A arte perde o direito à maternidade mal nasce, torna-se pública, anda de mãos em mãos, corpo perdido numa orgia.

Mas, será correto? Se a vontade de um autor é desaparecer, ele e a sua arte, será correto ressuscitá-la para o mundo contra a sua vontade?

Pergunto sem malícia, sem ter uma resposta em mente. Porque se escrevo sobre isto é porque ouvi as músicas lançadas ao mundo por outras mãos que não as do compositor. Mas há em mim o egoísmo de achar que aquilo que faço, que crio, embora precisando dos outros para SER, é maternalmente meu.

 

Sigmund Krähe  - Descent

 

Sigmund Krähe - Organ 67 - «Fall of an empire»

 

 

 

A Juventude

Olho constantemente para trás, para o que foi, dissecando os caminhos tomados, tentando perceber a interceção perdida, o cruzamento onde tomei a saída errada, a placa de sinalização que não li corretamente, a soma das pequenas coisas que me trouxeram aqui.

Agora, cheguei àquele sítio donde se vislumbra a juventude já lá longe, onde se revisita numa obsessão as músicas do passado e se sente um sofrimento indiscritível. E o indiscritível não é hipérbole, não é adjetivo metido sem contemplação – é coisa literal. Não sei realmente descrever os sentimentos que as memórias me provocam: ao rever a capa de um livro que comprei há vinte anos, ao falar de um episódio de vida que aconteceu há muito, ao falar de um local ao qual não regressei, ao ouvir as músicas que me destabilizavam e faziam vibrar naquela altura. Não é nostalgia, não é saudade, não é tristeza no sentido «duro» da palavra. É…

Há uns bons anos li o livro «Os anjos maus» de Éric Jourdan, um livro escrito pelo autor aos 16 anos. E se alguém quer perceber de que se alimenta esta angústia do envelhecer, bastará ler alguma coisa escrita por alguém muito jovem.

O envelhecer, este constante olhar para trás, não tem nada a ver com a perda da beleza, da firmeza, da decadência da parte física inerente ao passar dos anos (minto, tem algo a ver, mas não tanto assim), mas tem a ver com a perda de algo ainda maior, algo incomensuravelmente mais grandioso.

Não será o livro mais bem escrito que lerão, afinal foi um puto de 16 anos que o escreveu e a juventude é uma ode ao exagero, à impulsividade, aos extremos. A juventude é coisa sem elegância, sem respeito pelas normas, é ainda coisa de uma extrema ingenuidade do que ao viver diz respeito.

Mas é também, acima de tudo, um furor, um fulgor, uma paixão, um arrebatamento, um frenesi interior, uma crença in extremis no que está para vir.

Ler algo escrito por um adolescente ou jovem adulto é perceber que nenhum homem ou mulher de trinta, quarenta, cinquenta anos conseguirá replicar aquilo, conseguirá fazer transpirar para o papel a exaltação que é viver aos 16 anos. E todas as tentativas de trazermos até nós esta juventude perdida serão sempre ridículas, um plágio que nem plágio será de tão mal ataviado que é, uma crise de meia-idade grotesca, uma comédia de enganos para fazer rir à gargalhada o espetador.

E se ao ouvir aquele álbum que comprei há vinte e cinco anos as lágrimas me assomam aos olhos, não é pelos cabelos brancos semeados aleatoriamente, sem elegância, na minha cabeça, ou pelas rugas de expressão que imprimem um ar de cansaço à minha cara assimétrica, é por perceber que nunca, nunca mais irei ter fé no que está para vir, uma crença inabalável no viver, uma expetativa raiada de mistério, a paixão necessária para enfrentar o dia de amanhã.

E de todos os jovens que vejo, sinto-lhes inveja.  

IMG_20220402_192829[1348].jpg

Os anjos Maus, Éric Jourdan, edição Bico de Pena, 2009.

 

Despojos de guerra - subtrações e adições

Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.

Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.

Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.

IMG_20220320_181452.jpg

Story, Robert McKee (1997)

O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.

Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)

O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?

Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.

Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.

Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!

E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?

As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.

Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.

 

“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram  do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»

Vou para não ficar, Sónia Pereira

Bater, espancar, chicotear, matar.

"Era darem-lhe uma malha, chicoteá-lo, depois estrafegá-lo, regá-lo com gasolina e pegar-lhe fogo."


As palavras foram da D. Maria, mulher de 91 anos. Frágil, pouco mais de um metro e meio de um corpo delgado e em curva descendente, apoiada nas suas canadianas de estimação, mas sempre de língua afiada e respostas aguçadas que lhe fogem da boca como balas numa rajada de metralhadora.


As palavras raivosas, desta vez, tinham sido motivada pelas imagens da guerra na televisão da sala de espera. Crianças mortas, casas destruídas, caos semeado, o medo a ampliá-lo e os meios de comunicação a sorver caos e medo numa ânsia vampírica, esfomeada, sem escrúpulos.

No centro da fúria homicida da Dona Maria estava Putin, o arqui-inimigo, o anti-cristo.


Ao ouvir as suas palavras - mata-se o vilão e acaba-se a guerra - pensei em como a violência vive dentro de cada um de nós.


Durante o dia, este e os últimos quinze, não passou um par de horas que alguém não tenha sugerido limpar o sebo ao Putin. Mas também não passou nenhum a mais para além desse referido tempo, em que essa sugestão de homicídio não tenha vindo acompanhada de detalhes requintados de malvadez.


Matar não chega. Acabar com a suposta fonte do mal não basta.
Queremos sangue, queremos dor, queremos lágrimas de arrependimento, queremos ver a morte estampada no rosto antes da mesma se instalar, queremos a redução do outro a um nada. Menos do que isso...

Não chega.

A guerra, em última análise, é talvez a mais verdadeira expressão do que é ser-se humano. A ideia de que a violência, a capacidade de matar, é anti natural, uma espécie de degeneração da verdadeira essência humana, não podia estar mais longe da verdade.


Tentamos pacificar-nos, fazer crescer a empatia, semear e fazer germinar a benevolência, olhar o outro como nos olhamos a nós... Mas é um esforço. Séculos de esforço. Num primeiro impulso, quando a revolta irrompe e cresce luxuriante, o que nos vem à cabeça num primeiro instante, o impulso sem filtro, o instinto primário, é a violência. Somos isto.


Bater, espancar, chicotear, matar.

A arte frustrada dos pequenos fascistas

 

Grandes desgraças históricas teriam sido evitadas se o mundo da arte não fosse tão elitista e seletivo.

Hitler sonhava ser pintor, considerava-se, acima de tudo um artista. A pintura era o seu refúgio, o seu sonho de vida. Se o menino não tivesse sido recusado duas vezes na academia de belas artes de Viena, talvez agora a história do século XX fosse radicalmente diferente.
Veríamos uns quadros medíocres do menino nuns quantos museus, talvez o menino com o tempo até se aprimorasse (já vi pinturas piores) e o holocausto, a guerra, seriam coisas remetidas à ficção, porque um artista feliz reprime ou transforma o facínora que por lá também habita. Todo o lado sombrio seria transportado para pinceladas melancólicas numa tela, o descontentamento diluído em tinta.

00-05-24-400px-Adolf_Hitler_-_Wien_Oper.jpg

Adolf Hitler, 1912

E, verdade seja dita, aquele estilo, aquele cabelinho lambido para o lado e o bigode (não posso categorizar porque só me surgem comparações de estilismo pubiano), estão melhor para um artista do que para um ditador.

Maldito júri da academia, malditos elitistas armados em bons...

Depois, temos o nosso pequeno exemplo nacional. O sonho do Dr. Sapo de Loiça era ser romancista. Uns quantos livros editados, sem nunca conseguir chegar à pujança de vendas do Dan Brown lusitano (nem pouco mais ou menos).

Não fossemos nós leitores tão esquisitos (até nem somos, papamos quase tudo), não fossem as editoras tão elitista, remetendo o Dr. Sapo de Loiça para edições de segunda categoria, e também nós escreveríamos uma história diferente nos anais da história do ano 2021 português.

Caros eruditos que têm o poder de decisão nas mãos, lembrem-se: mais vale um artista de meia tigela (com tantos que os há, mais um menos um), do que um aspirante a ditador.

Deixai os meninos serem escritores, pintores, escultores, pianistas, compositores, bailarinos, realizadores. A mediocridade artística será de somenos importância quando comparada com o estilhaçar de uma sociedade, a morte da empatia, a frustração transformada em fúria.

 

Whats my drug of choice?

Em adolescente ouvia esta música e vibrava sem perceber o seu essencial sentido. A tormenta da voz chegava, mesmo sem o entendimento da tormenta da letra.

Alice in Chains - Junkhead (Dirt - 1992)

Estudei num meio artístico, de à vontade em experimentar coisas diferentes, mas a minha educação ou tão simplesmente a minha personalidade desajustada do meio onde estava inserida, tornara-me rígida, muito utópica na maneira de fruir as coisas. Lembro-me de dizer a um colega de faculdade que viver, amar, deveria ser experiência narcótica suficiente, que a vida tinha mecanismos para nos levar ao êxtase sem necessidade de adicionar qualquer substância extra. Esta lembrança faz-me sorrir e praguejar sozinha.

Assim, no meio de um louco, desgovernado e típico ambiente adolescente e pré-adulto, eu era uma exemplar exceção. Eu não bebia, não fumava e não fodia. Não frequentava as festas deles porque não há nada pior do que estar sóbrio no meio do delírio alcoólico ou narcótico. Honestamente, arrependo-me. Sempre fui de uma ingenuidade confrangedora.

Hoje, a caminho da meia idade, percebo que todos temos uma qualquer droga de eleição, por muito obscura e distorcida que ela possa ser. Mesmo quando a vemos com olhinhos inocentes e não a chamamos por droga e tal apelido nos afronta.

Nos tempos que correm, confinados em casa ou tentando seguir com uma rotina embrulhada em medos, onde ações básicas, de elementar necessidade, se tornam em manobras de risco dignas de um filme de ação, rimos dos memes da velhinha que pede vinho à janela num cartaz, rimos das piadas da quarentena, dos excessos cometidos para acalmar este desassossego e medo interior. Excesssos alimentares, excessos alcoólicos. O consumo de álcool tornou-se uma droga aceitável, o medicamento do apaziguamento do desconforto que ninguém criticará, tornou-se droga fashion e fotografável.

Não por estas características, mas pela minha mentalidade muito pouco transgressora, esta é a minha droga de escolha.

É como uma amarra que se solta, mas sem que nos tornemos completamente desamarrados, uma descompressão que se sente, sem que se deixe de estar sufocado. Claro está que beber será como o uso de qualquer outra droga. Os excessos levarão, inevitavelmente, a uma adição em que o prazer é substituido pela necessidade. 

Enquanto houver prazer, o mundo será, por um par de horas à noite, um sítio menos perigoso, haverá esperança, uma solução ao virar da esquina.

E entre gargalhadas, ideias malucas, mas surpreendentemente fantásticas, tomarão forma, ganharão vida e, com alguma sorte, haverá na sobriedade das restantes 22 horas, força suficiente para as colocar em prática. 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mensagens

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub