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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

O silêncio ensurdecedor nas entrelinhas

Refugiava-me por detrás de um semblante azedo e de um mutismo acusatório. Parecia-me impossível que ele não compreende-se o que me atormentava, as aflições e inseguranças que me acossavam. Cheguei a comentar com uma amiga: “Será que é preciso fazer um desenho?” As minhas frases curtas, os meus silêncios, as minhas lágrimas mal escondidas… as entrelinhas que eu esperava que ele conseguisse ler e interpretar passavam-lhe ao lado, como uma brisa. Se inicialmente julguei que ignorava o que, para mim, era uma enxurrada de informação que eu lhe oferecia em desespero, com o passar dos anos percebi que não havia qualquer maldade associada. Os meus silêncios, para ele, eram apenas isso: a falta de som, de palavras; a minha expressão carregada de mágoa, as minhas reações hiperbólicas às pequenas coisas eram a manifestação de um dia menos bom, cansaço, saturação. Coisas da vida. Havia nele uma completa incapacidade de perceber esta linguagem em que me expressava.

Esta guerra nuclear que me abrasa, ele não a vê, desconhece-lhe a devastação associada.

Durante décadas questionei-me se o mal desta incompreensão era exclusividade dele, do meu marido, se era a minha forma de me expressar que era demasiado enrodilhada e complexa ou se era culpa de uma generalizada incapacidade masculina de perceber o colosso que é o hipertexto da comunicação feminina.

Esta semana, deparei-me com umas publicações de um realizador nacional sobre algumas das últimas novidades cinematográficas internacionais. Acabo por ter interesse em saber a opinião dos outros sobre livros e filmes, porque a escrita, seja de prosa ou argumento, é-me importante. Através destas análises literárias ou cinematográficas compreendo que a forma como vejo o mundo é, não raras vezes, idêntica à das outras pessoas. Mas, outras vezes, abre-se um fosso. Um abismo aparentemente intransponível entre eles e eu.

O primeiro filme era o filme francês Anatomia de uma queda e o segundo é o filme Vidas passadas. Gostei bastante dos dois filmes, principalmente do argumento e assim foi com um certa incompreensão que li as críticas que o cineasta fazia às duas obras. E o que o incomodava exatamente nestes dois filmes? O banal, a suposta simplicidade narrativa, a forma que apelidou de televisiva da cinematografia, a narrativa curta que era esticada, sobrando silêncios, porque não havia nada para se dizer. Alguns dos comentários às publicações referiam ainda a frieza da personagem principal do filme francês, a contenção ou falta de emoção (e esta crítica bateu ainda mais forte, porque Sandra Hüller tem um desempenho fenomenal, digno de todos os prémios que apareçam pela frente).

Fiquei a matutar naquelas apreciações, como normalmente fico quando a visão é diferente da minha. Tento compreender o que separa o meu mundo do dos outros, tento compreender a cisão, a fenda que separa aquilo que me move daquilo que mexe com os outros.

Pensava para mim que tanto um texto como o outro estavam muito bem escritos, dois argumentos excecionais, moviam-se no que estava nas entrelinhas, sem serem condescendentes com o espetador e, sim, o que não era dito, o que se sabia estrangulado, era de brutal importância e tudo aquilo que era essencial não acabava na palavra pronunciada. Nenhum dos dois estava enquadrado dentro de uma forma narrativa clássica, dentro dos seus gêneros, mas essa aparente desconstrução ou fragmentação só acrescentava densidade, nunca fragilidade.

“Mas será que é preciso fazer um desenho para que eles entendam?”

Quando percebi o que unia estes dois filmes produzidos em países diferentes, falados em diferentes línguas, um outro filme mais antigo assomou-se-me através das frinchas da memória. Um filme australiano de 2003 chamado Japanese story. Vi o filme há quase duas décadas e lembro-me da inusitada sensação do peso da tensão criada pelas emoções que não eram dissecadas em diálogos explanatórios, da estranha evolução narrativa e da evidência, antes mesmo de ter visto os créditos, de que aquele filme tinha sido realizado e escrito por uma mulher. E foi. Realizado por Sue Brooks e escrito por Alison Tilson.

Também Anatomia de uma queda foi escrito e realizado por uma mulher – Justine Triet, e o mesmo se passa com Vidas Passadas, escrito e realizado por Celine Song.

E sabendo que não havia nenhuma misoginia ou maldade na apreciação do realizador a quem eu cuscava nas redes sociais as críticas cinematográficas, restava a evidência de que, por vezes, é mesmo preciso fazer um desenho. Há uma característica nas escritas no feminino, quando são feitas com autenticidade ou, como lhe chama a escritora Elena Ferrante, verdade literária, que as afasta da escrita no masculino. E esta característica é a capacidade de compactar uma guerra nuclear no silêncio, naquilo que fica por dizer; um turbilhão ameaçador, esmagador num esgar de boca, uma tristeza profunda, uma vida que se esvazia de sentido num rosto que não se vira para trás, um grito altissonante contido numa mão que repousa despreocupadamente sobre uma perna. A devastação travestida de banalidade.

E pegando apenas nas minhas leituras no feminino dos últimos dois meses, Os anos de Annie Ernaux, Canção doce de Leila Slimani, Tudo é possível e Olive Kitteridge de Elisabeth Strout e Vidas de raparigas e Mulheres de Alice Munro, todos estes textos literários sofrem dessa aparente banalidade, de uma contenção que extravasa por todas as frinchas do que está implícito, de uma certa desconstrução genérica e de um desconforto que magoa. São textos que se constroem para além da leitura imediata, para além do ato físico da leitura, porque, embora todo o texto literário seja apenas palavras, quando há engenho de quem escreve, aquilo que fica por dizer, o silêncio nas entrelinhas é mais ensurdecedor do que qualquer frase descritiva de um grito uivado.  

Talvez haja alguma estranheza perante uma escrita que ainda não é mainstream, a escrita no feminino, principalmente quando se fala de cinema, mas creio que com o tempo se chegue a um patamar em que não seja necessário fazer um desenho, em que qualquer um de nós, homens e mulheres, seremos capazes de ler nas entrelinhas, perceber os silêncios, sentir a ressonância das palavras que ficaram estranguladas numa banal frase breve.

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Vidas passadas, de Celine Song, 2023.

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Anatomia de uma queda, de Justine Triet, 2023.

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Uma história japonesa de amor, de Sue Brooks, 2003.

O universo gay para a mulher heterossexual: curiosidade, fetiche ou universo escapista essencial?

Corria a década de noventa do século XX e eu, uma adolescente viciada em música e livros e que aspirava estudar cinema, vivia uma invulgar obsessão, uma curiosidade por um mundo particular, que não era o meu.

Desde que tenho memória, o universo homossexual masculino sempre surtiu em mim um estranho efeito apelativo. Olhando numa perspetiva histórica para esse passado, o da minha adolescência, alguns poderão justificar essa pretensa obsessão devido à obscuridade (a nível de representação artística) que os homens gays e as suas histórias tinham na época, ainda para mais num país como Portugal. Não era de todo fácil encontrar livros ou filmes em que uma personagem homossexual fosse representada e assim o pouco que encontrava, apreciava-o como se de um tesouro se tratasse.

Mas de onde vinha esta minha tara? E era uma tara, obsessão, uma curiosidade, era exatamente o quê? Durante estes vários anos nunca pensei muito em me justificar e bastava sentir-me bem a navegar naquele universo que não era o meu e no qual não estava representada, para continuar na minha senda por esses representações literárias e cinematográficas ─ a busca por uma total e completa representação daqueles que estavam num espetro afetivo tão distante do meu.

Foram precisas três décadas para finalmente me questionar e o questionamento vem porque a obsessão persiste. E se a pergunta agora se impõe é porque percebo, com alguma surpresa, que não estou sozinha. Se na adolescência eu era a rainha das cenas gays, agora eu sou um pequeno peão num gigantesco mercado. Se antes eu era a esquisita que vasculhava livros obscuros na biblioteca ou numa livraria, agora não preciso sequer de pedir, vasculhar, procurar. Há-os à farta, em vários registos, em vários formatos artísticos e de entretenimento.

E esta constatação não vem em tom de crítica. Olho em volto e falando com algumas adolescentes de agora (haverá frase com maior força para me atirar para os confins da meia idade do que esta?), percebo que também elas partilham em muito desta adoração por este universo LGBTQIA+. E o mercado obedece. Chegados à década de vinte do século XXI, vemos o entretenimento e a arte supostamente atentos e preocupados com as minorias, principalmente as minorias no que à orientação sexual e identidade de gênero diz respeito. Mas será que estão? Preocupados?

Percorrendo alguns canais de Youtube sobre este tema, é recorrente o surgimento de uma opinião interessante: todo o conteúdo LGBTQIA+ não é propriamente direcionado a um público LGBTQIA+ (e nunca o seria em exclusivo). Os conteúdos são direcionados para a fatia de público que mais os demanda, que os procura e que, sendo uma fatia gigante, é a fatia a se agradar: adolescentes e mulheres heterossexuais. E nesta obediência do mercado ao público que lhe rende, há em mim um rol de emoções algo ambivalentes. Por um lado, pergunto-me se os nossos gostos não estarão a ferir (de alguma forma) uma minoria até agora silenciada e marginalizada, por outro lado, não sinto culpa pela submissão dos mercados, por uma razão muito simples: enquanto mulher, vi durante toda a minha vida os “produtos” artísticos serem produzidos, pensados, desenhados, tendo em conta quase exclusivamente um público masculino. Mesmo aquilo que supostamente era direcionado a nós, mulheres, que nos tinha como público preferencial, era moldado sob uma tutoria masculina. E nós acabamos a olhar o mundo de uma forma muito deformada por esses óculos que não eram os nossos. Agora, ouvindo o tinir dos sinos do lucro, eles decidiram ouvir-nos a nós. Se há algo de retorcido nesta constatação, há-o certamente e não sei bem o que sentir relativamente a isso.

Na atualidade, no segmento editorial Young Adult, as novidades de livros queer são diárias, embora também as haja entre o segmento de literatura convencional, no streaming, entre filmes e séries para um público mais adolescente ou mais adulto, as ofertas também são variadas. É difícil passar mais de uma semana sem uma novidade numa das plataformas ou no cinema. E temos séries como Heartstopper (Netflix) transformada num sucesso, com milhares de fãs em todo mundo ou o filme da Amazon Prime Red, White and Royal Blue a aparecer como um dos filmes mais visionados da plataforma em questão.

E não havendo nenhum mal nisso, em se direcionar um conteúdo para um público que o quer, surge, no entanto, algumas preocupações, vindas principalmente do público LGBTQIA+:

        Estarão, nesta agora mais comum representação queer, as personagens masculinas representadas de uma forma mais heteronormativa para agradar o público feminino heterossexual?

        Haverá uma espécie de adaptação heterossexual (a vários níveis: sexual, social, cultural) de um universo que não o é, para agradar a um público específico?

        Havendo uma abundância de representação homossexual masculina, porque é que é tão difícil ainda agora encontrar uma maior representação sáfica? Será porque o público feminino heterossexual não se interessa?

        Haverá uma espécie de fetiche feminino por estas representações homossexuais masculinas?

Olhando agora para a minha pilha de livros, dos últimos que li este ano, passando os olhos pelos belíssimos Nadar no Escuro de Tomasz Jedrowski e Young Mungo de Douglas Stuart, recordando as imagens do filme God’s Own Country, um dos poucos filmes em que espetei com cinco estrelas no Letterbox ou ainda o ridículo, adolescente e adorável (filme e livro) Red, White and Royal Blue, vem a pergunta milionária: porque é que gosto disto, porque é que um universo afetivo, sexual, cultural, social, que para mim aparece como um universo fantástico (pois não lhe pertenço), se apresenta como o universo onde quero estar?

Pesquisando aqui e ali, analisando-me e aos que me rodeiam e que partilham do mesmo gosto, talvez seja possível chegar a um punhado de respostas, embora ache que uma tese na área da psicologia pudesse ser interessante, porque tudo o que disser será de índole muito superficial:

         ─ Aquilo que causa estranheza aos outros nesta identificação peculiar é na realidade a chave da explicação: identifico-me com a história de um homem gay, com a história romântica ou de superação de um homem gay porque não estou lá representada. E pensando num universo afetivo onde não se está representado, concluiu-se que não é possível estabelecer comparações.

Como adolescente, sempre fui muito insegura a vários níveis. Achava que não era suficiente em nada: no aspeto físico, na beleza, na inteligência, na capacidade de superação. Medíocre ou mediana como um todo. Suponho que esta sensação avassaladora de se estar aquém tenha moldado em muito a minha forma de ver e aceitar o mundo à minha volta. E talvez o mesmo se passe com as adolescentes de hoje em dia. E a única forma de se experienciar um mundo onde existe amor, beleza, superação e revolução, é procurando um universo onde não se esteja, onde não seja possível estabelecer nenhum tipo de confronto comparativo: ela é melhor do que eu, mais bonita, mais elegante, mais inteligente, mais capaz, mais independente, mais otimista, mais simpática, mais astuta, mais destemida.

Onde não havia elas, só eles, eu podia estar, porque não havia nenhum espelho onde pudesse ser confrontada pelo meu pobre reflexo.

         ─ Outro dos fatores de interesse é o que classifico de desconstrução de estereótipos de gênero. As figuras masculinas que tinha como referência há trinta anos eram figuras que facilmente cairiam numa comum caracterização do sexo masculino: homens que irradiavam uma masculinidade tóxica, muito machos, mesmo entre os adolescentes borbulhentos da escola, com grande dificuldade em demonstrar afeto e que criticavam fortemente quem (de entre eles) o fizesse. O gesto era comedido, a não ser que se estivesse no campo da abordagem sexual, onde aí era dominante, mais agressivo. Tudo o que era da ordem das emoções era maricas, efeminado, coisas de gaja.

No entanto, num universo onde não havia mulheres para se dominar, submeter, mostrar superioridade, esses estereótipos de género eram subvertidos, quebrados. Pegava em Maurice de E. M. Foster e encontrava Maurice dominado por uma afeição, um amor por Clive, que não lhe permitia uma expressão física desse afeto, e encontrava um tipo de homem que não existia na minha realidade. Um homem que não tinha medo das suas emoções, que mesmo se sentido ameaçado pelos seus sentimentos impossíveis, decidia ir contra a corrente, ser aquilo que o invadia: desejo, afeto, carinho, amor.

Esta quebra, subversão de uma construção de gênero acabou por ser, para mim, enquanto adolescente, uma das principais motivações para a procura daquele tipo específico de objeto artístico. O que ali se encontrava era uma suavização do que era áspero, bruto, empedrado. Para mim, se pensasse em igualdade de gênero, era nisso que pensava: alguém capaz de sentir e demonstrar o que sentia para além da convenção, alguém capaz de chorar como eu.

         ─ Por último, o que aquele universo trazia e era de difícil replicação num qualquer outro universo era a batalha e superação daquilo que era proibido, criticado, mesmo que o protagonista estivesse sujeito a injúrias por ser aquilo que era.

Grande parte da literatura gay e lésbica da minha adolescência estava focada precisamente no conceito base do crime/proibição/pecado/censura e crítica social. Aquelas pessoas ali retratadas eram, só por sentirem paixão/desejo/amor por alguém do mesmo sexo, a face do crime e um gesto de afeto era uma transgressão. Assim, aquelas demonstrações afetivas ali retratadas tinham uma valoração diferente de qualquer outra que pudesse ser demonstrada por um homem heterossexual por uma qualquer mulher. Não havia no meu universo heterossexual qualquer possível paralelo com aquilo, pois nem eu nem nenhum homem heterossexual teria de superar tais obstáculos, ver as suas demonstrações de afeto serem consideradas nojentas ou criminosas, alvo de escrutínio público, sujeitas a sanções. O peso do meu afeto heterossexual nunca poderia ser tamanho, tão extremo, tão evidente. Tão imenso. Havia assim um elemento épico que não encontrava em mais lado nenhum, a não ser naquele universo.

Em suma, a possível identificação, mas sem elementos de comparação, a subversão de certos estereótipos de gênero, a suavização da masculinidade e o elemento épico, sem paralelo na minha vida, serão, os elementos que mais facilmente encontro como justificação de uma preferência literária/artística e de entretenimento. Talvez se tivesse sido uma adolescente carregada de auto estima, as minhas leituras tivessem sido outras. É bem possível. Ou talvez não.

Depois deste pequeno exorcismo, desta psicanálise do meu eu adolescente, deixo apenas uma referência à questão do fetichismo. Não me parece que esta acusação de fetichização tenha fundamento, no sentido em que, tanto no entretenimento como na arte no geral procuramos pontos de fuga, mas também pequenos lugares de identificação. O que nos leva à escolha de um livro, de um filme para ver ou até mesmo de uma exposição de arte, são os lugares de identificação, mesmo que esta aconteça através do desconforto, da desorientação. Há sempre um Eu a procurar um buraco de fechadura para espreitar.

O nosso Eu é dominante, mesmo quando pretendemos subjugá-lo e esvaziarmo-nos dele. O que quer dizer que, de certa forma, ou chamamos outra coisa a essa procura do nosso Eu naquilo que nos rodeia ou então teremos de classificar toda e qualquer relação com a arte e o entretenimento como fetichista.

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God's Own Country, de Francis Lee (2017).

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Young Mungo, de Douglas Stuart (2022)

Excisão da empatia

Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.

Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?

Precisamente… tudo.

Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.

Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.

No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.

E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.

No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.

E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?

E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.

Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.

Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.

Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.

Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.

Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?

E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.

E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?

Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?

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Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues

 

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As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007. 

Red, White and Royal Blue

Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.

Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.

Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.

Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.

Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.

Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.

E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.

Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.

E realmente é:

Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.

E eu adorei.

Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.

Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.

Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.

Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.   

Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.

Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.

Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.

Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.

Red, white and royal Blue

Realizador: Matthew Lopez

Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.

Amazon Prime

Mais um gajo!

Fazia um scroll desinteressado no telemóvel numa rede social, quando me apareceu a notícia da divulgação do prémio Saramago 2022, entre polícia na universidade, Ronaldo, Qatar e a guerra na Ucrânia.

Abro a notícia do prémio literário e a primeira coisa que me saiu, alto e a bom som, sem filtro prévio, foi:

─ Mais um gajo!

Mas apontar o óbvio, mesmo usando dados que suportem esse óbvio, só traz dissabores. Não faltarão os guardiões da meritocracia, da justiça da qualidade, do valor do vencedor. Se ganhou, é porque era o melhor, dirão alguns.

Mas hoje acordei teimosa, por isso, aqui vai. Peguemos nos principais prémios literários portugueses e de língua portuguesa. Refiro-os como principais pois são os que terão um maior prémio monetário e são também os que trarão aos vencedores uma maior notoriedade.

Temos o Prémio Leya, com um valor de 50 mil euros, instituído desde 2008. Durante o período de 2008 a 2022 (sendo que em alguns anos o prémio, por decisão do júri, não foi entregue), ganharam o galardão 7 homens e 2 mulheres - 2 mulheres num total de 9 vencedores.

De notar que a própria composição do júri é também, a nível de género, bastante díspar. Começaram em 2008 com 6 homens e 1 mulher (7 membros) e hoje em dia estão com 5 homens e 2 mulheres.

Avancemos para o Prémio Saramago, que é um prémio bienal, atribuído desde 1999, com o valor de 40 mil euros. Dos 12 vencedores até à data, apenas 2 mulheres ganharam o prémio desde 1999. Ver o nome do vencedor de 2022, o escritor brasileiro Rafael Gallo, nem espanto causa. Surpreendente é ler os comentários à notícia do vencedor. A celeuma pelo anúncio não estava ligada ao facto de ser mais um homem a vencer o galardão, mas sim ser um escritor brasileiro.

Deste prémio, saliento ainda a composição dos membros do júri nesta última edição - 8 membros, sendo 5 deles homens. Esses 5 homens eram todos eles antigos vencedores do prémio em questão.

Para completar aqui este apanhado de prémios, refiro o prémio Oceanos, prémio que começou por se chamar Prémio Portugal Telecom e que é um prémio para autores de Língua Portuguesa, atribuído neste momento no Brasil, com o valor total de 250 mil reais (a distribuir entre os 3 primeiros lugares). Entre 2003 e 2021, dos 19 vencedores (primeiro lugar), apenas 3 mulheres conseguiram ganhar este prémio.

Remato com o Prémio Camões, prémio atribuído desde 1989, pelos governos de Portugal e Brasil, com o valor atual de 100 mil euros, pelo conjunto e importância da obra dos autores vencedores. Em 34 vencedores, temos 7 mulheres.

Extravasando as fronteiras da língua portuguesa e dos prémios para autores em língua portuguesa, deixo apenas os dados dos vencedores do Prémio Nobel da Literatura: 119 vencedores, 17 mulheres.

Ora, com esta pequena e singela análise não pretendo aferir que os vencedores de todos estes prémios durante todos estes anos não serão escritores capazes. Longe de mim sugerir tal coisa. Muitos deles são habitués das minhas estantes, muitos deles são presença constante nas notícias que leio, nos feeds das minhas redes sociais. Mas, tê-los a todos como presenças habituais nos meus mundos ficcionais, deixa-me um travo amargo na boca. Eu, mulher, consumo muita literatura escrita por homens. Eu, mulher, levo o meu tempo a ver o mundo pelos olhos de um homem, de muitos homens. Eu, mulher, consumo histórias sobre mulheres, escritas por homens.

─ Ah, mas são eles os melhores. Se ganharam, devem ser os melhores de todos os candidatos.

─ Serão?

Temos prémios literários decididos quase exclusivamente por homens e ganhos por homens. Temos publicações nas maiores editoras movidas por esses prémios, carreiras que se agigantam à conta desses prémios e o que sobra é uma visão unilateral do mundo, uma visão masculina do mundo. E o mais engraçado disto tudo, o mais estúpido disto tudo é que a maioria dos leitores, a maior percentagem daqueles que lê de um a mais livros por ano, é feminina.

No meu mestrado de Escrita Criativa na Faculdade de Letras em Coimbra, 80% dos alunos do meu curso são mulheres. Daqueles que querem escrever, daqueles que querem melhorar capacidades, procurar uma identidade literária e poli-la, 80% são mulheres. Mas mulheres também elas já afogadas em muita literatura masculina, possivelmente já moldadas por muitos anos a ver o mundo através de óculos masculinos.

E não deixo sugestões para uma mudança neste paradigma. Vislumbro apenas fragmentos da engrenagem por detrás desta gigante máquina que é o mundo editorial e mesmo assim consigo concluir que sou demasiado velha para acreditar em mudanças.

Foi assim, é assim e continuará assim.

 

Personagens e seus lugares como fantasmas em casas assombradas

Ao revisitar um lugar da nossa vida, talvez anos depois da nossa última visita, fragmentos da nossa presença antiga reverberam pelo tempo. Evocamos sem esfoço sensações, emoções sentidas naquele local há anos, em nós materializam-se odores, sabores, como se o tempo não fosse tempo e ali, à nossa frente, se tivesse aberto uma porta física para o passado. Sentimos o odor de um cozinhado, o cheiro de uma planta, de uma flor, que parece só ali existir e um cheiro faz-nos viajar, ora aos trambolhões, numa estrada esburacada de ansiedade, ora ao som de um hino nostálgico que nos faz sorrir.

Através deste portal mágico, a evocação de uma conversa, das pessoas que nela estavam envolvidas e do cenário onde esta se desenrolou, com todos os detalhes cénicos, tudo isto aterra com estrondo ali à nossa frente.

Os espaços nunca são só espaços e mesmo quando são espaços novos, nunca visitados antes por mim, têm em si a tatuagem de todas as presenças antigas, os ecos da sua história, como um organismo vivo que se alimenta de tempo. Do tempo de cada pessoa, animal, planta e árvore que por ali nasceu, cresceu e morreu.

Mas e o que acontece quando a evocação não é real? Quando aquilo que se materializa ali à nossa frente não existe, nunca existiu em mais lado nenhum a não ser na nossa cabeça e num documento word gravado num disco rígido de um computador?

Num passeio de fim de semana, regressei a um local onde já não ia há anos, mas que revisito com frequência, não fisicamente, mas através de palavras escritas, de uma história inventada que se desenrola naquele lugar real.

Centenas de pessoas enchiam o espaço, num evento automobilístico, mas para cada lado que olhava, apenas as via, às minhas personagens. Fantasmas que faziam desaparecer tudo o resto.

Os dois homens sentados nos degraus exteriores do museu a lerem uma carta, de dedos trémulos, pela emoção daquilo que liam e pela presença um do outro. Só os dois, na escadaria larga, diluindo todas as presenças do agora numa névoa.

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Museu do Caramulo

E entre conversas cruzadas dos visitantes, roncos exibicionistas de ferraris, a voz do speaker do evento a invadir tudo através dos altifalantes, ainda assim as conseguia ouvir, às minhas personagens.

Salvador a traduzir para inglês um carta para o outro, ali a seu lado, a entender. E entre palavras que não eram as dele, pois aquela carta não era de nenhum dos dois, a sua cadência, a sua entoação vertia para Alexander tudo o que lhe ia na alma, o medo, a ansiedade, o estrondo da paixão, a emoção da novidade de alguém o desejar, de o proteger.

Quando me dirigi para a zona das partidas da corrida automobilística, onde cada carro com arranques espalhafatosos tentava fazer mais barulho do que o anterior, porque barulho era excitação, era exaltação, era uma plateia ao rubro, vi o hotel à minha frente, no outro lado da estrada, na sua graça de edifício antigo.

Pressenti a presença das minhas personagens atrás das cortinas de uma das janelas, presenças eufóricas pela descoberta do amor. E os seus murmúrios lânguidos, os seus beijos sôfregos, os seus suspiros excitados abafavam os grunhidos toscos dos motores, na antecipação do arranque e subida da rampa.

Quando depois apareceu o avião para fazer acrobacias aéreas, voos em parafuso, voos invertidos, voos a baixa altitude, a sua passagem a riscar o céu azul, senti-me colapsar pelo medo da «minha» Alexandra.

Quando ela viu os aviões de combate em aproximação ao edifício devoluto, o antigo sanatório na serra, local onde ela julgava que o irmão estava escondido, o desespero dominou-a. Sentia-se desesperada e impotente: ela, uma adolescente, seria incapaz de travar o que aquelas máquinas de guerra tinham vindo ali fazer: destruir, reduzir a escombros um edifício e os que lá estivessem dentro.  

O avião de acrobacias sobrevoava o museu, o hotel, a serra, a baixa altitude e em mim, no meu peito, ribombavam os batimentos cardíacos aflitos da minha personagem. Os medos dela, as suas desilusões, foram, por momentos, os meus também. Em mim, tal como a ela, nada resta. Uma vida em escombros, uma vida onde se empilham corpos e perdas.

E ali estava eu num espaço que me fez evocar momentos, emoções, sentimentos, palavras de pessoas que não existem. E como é que é possível que algo que não é, se faça pressentir de forma tão forte, tão intensa?! Como é que algo que nunca aconteceu pode rasgar espaço e tempo, pode estrebuchar na memória, pode fazer doer?

Passaram anos, um livro guardado numa gaveta, numa cloud, como um génio numa lâmpada, mas as suas personagens vivem, como fantasmas numa casa assombrada, numa repetição contínua de uma história, numa luta para se escaparem de uma dimensão que é a delas, mas que aos seus olhos e aos meus, não lhes chega.

Quanto a mim, aquela que as criou, talvez precise de um exorcismo destas personagens, de lhes fechar o portal, de as deixar morrer na dimensão a que pertencem.

Esquecê-las e avançar.    

Pode um desejo imenso

Ceci n'est pas une critique littéraire

 

O que me leva a comprar um livro específico nem sempre será a magnificente mestria do seu escritor, o resumo apelativo da história na contracapa, a resenha positiva de um qualquer crítico literário num jornal ou revista de referência ou a futilidade (ou não) de uma capa atrativa. Rejo-me, não raras vezes, por desejos literários obscuros. Desejos obscuros que me levam a procurar «As memórias de Adriano» de Youcenar, sem que o colosso que Marguerite é seja importante nessa escolha, ou ainda, neste caso, procurar «Pode um desejo infinito», sem que tenha presente toda a obra de traduções e ensaios premiados de Frederico Lourenço.

Chamo o meu interesse literário de obscuro, porque não o consigo realmente compreender. O adjetivo nada tem de pejorativo, é só demonstrativo da escuridão das suas razões. Desde a minha adolescência (e tenho agora 43 anos) que sou complente fascinada pela iconografia gay, algo completamente deslocado da minha realidade – uma mulher heterossexual, nascida de uma típica família «tradicional» numa pequena localidade, do mais banal que a vossa imaginação possa desenhar na vossa mente. E se será natural que as pessoas LGBT procurem representatividade naquilo que leem, eu não sei porque procuro, porque comecei a procurar, porque continuo passados trinta anos a fazê-lo. Na minha mente arranjo algumas justificações ensaísticas, fundamentações de grande complexidade psicológica, camadas e camadas de desejos dissecados, de uma pessoa desmontada em peças, mas ainda assim nada de tangível. Talvez chamá-lo, a este desejo por toda e qualquer representação da cultura, iconografia homossexual, de obscuro, seja, afinal, correto e o que baste para o classificar.

Mas não estarei sozinha. Talvez um dia comece por conversar com as adolescentes que hoje devoram as recém-chegadas traduções dos livros de Alice Oseman, «Hearstopper», que deliram com a série da Netflix com o mesmo nome ou que idolatram a série «Young Royals» e que impulsionam a chegada, tanto ao mercado editorial como ao audiovisual, de cada vez mais obras de temática LGBT.

 

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Pode um desejo imenso, Frederico Lourenço, Quetzal, 2022

 

Mas de volta a Frederico Lourenço, acompanho-o desde há uns tempos nas redes sociais, embora tudo o que lera dele fosse apenas os textos que ali publicava. Voyeurista, como sempre sou daqueles que admiro, nunca comentei nada naqueles espaços, sempre no receio de que a minha ignorância fosse ofensiva. E por vezes, é-o de facto. Quando ele publicitou uma nova reedição da sua obra «Pode um desejo imenso», obra publicada inicialmente em 2002, todos os volumes iniciados pousados na minha mesa-de-cabeceira, por lá teriam de ficar enjeitados por mais um tempo.

O livro, que tem uma capa belíssima (e não há nada de fútil na beleza de uma capa de um livro), conta a história de um professor universitário, Nuno Galvão, camoniano de paixão, que a dada altura desenvolve um fascínio, uma paixão platónica, por um dos seus alunos, Filipe. Esta paixão é como um paralelo, um reflexo da história do próprio Luís de camões e de D. António de Noronha, de quem o poeta era perceptor.

O livro constrói-se com a história de Nuno, a preparação da sua comunicação para as jornadas sobre Camões na universidade, a aproximação a Filipe, sendo que depois ruma até ao passado, até à altura em que Nuno estava na mesma posição de Filipe, como estudante, também ele mergulhado nas dúvidas e amores exaltados próprios da idade, focado, tal como no presente, na lírica de Camões, e onde vemos a gênese de outras personagens, colegas de Nuno, personagens que marcam a parte central do livro e que alicerçam o seu desenvolvimento para o desenlace final.

Na parte final, um regresso à atualidade, com todas as suas perdas trágicas e possíveis recomeços.

Li o livro num ápice e poderia catalogá-lo como um verdadeiro page turner, sem que com isso esteja a dizer que é um livro de fácil leitura. A prosa de frederico Lourenço é fluente, mas com muitas referências intertextuais que, confesso, não terei totalmente captado com toda a certeza. Na parte inicial do livro, onde vemos a comunicação de Nuno para as jornadas camonianas ganhar forma, para quem é um leigo da lírica de Camões, da investigação feita nesse âmbito, a leitura, embora muito interessante, é complexa.

Agora, num olhar mais subjetivo sobre a obra, quando se gosta de um livro, de um filme, de uma peça de arte, seja ela qual for, há sempre uma base de identificação que está implícita, mesmo que essa identificação seja através de um tremendo desconforto, de uma culpa latente ou de um flagrante reflexo no qual nos vemos como não gostamos que nos vejam, nus e crus.

Frederico Lourenço escreveu este livro numa idade próxima da minha. Mais novo, mas ainda assim próximo o suficiente para que me identifique de uma forma absurda com a personagem principal, com os seus dilemas, os seus medos e os seus desejos. Mesmo eu sendo uma mulher, heterossexual, com um trabalho ridículo numa aldeia e não um professor universitário gay.

É estar-se num momento em que aparentemente se tem tudo, mas falta a inflamação, a estridência, o caos, a desordem de um amor, de uma paixão. Mas quando essa paixão aparece, com ela vem também a sensação do risco, do ridículo, da ética, da moral, da potencial perda.

Como isto não é uma crítica literária, posso dizer simplesmente que gostei, que adorei o livro, que ao acabá-lo, fiquei ensimesmada, mergulhada num certo vazio, a pensar na vida, na de Nuno Galvão e na minha.

E com uma vontade de descobrir mais, para além dos fragmentos sobreviventes do ensino secundário, da lírica de Camões.

 

Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.

Ode de Luis Vaz de Camões, em «Pode um desejo imenso», de Frederico Lourenço

A Juventude

Olho constantemente para trás, para o que foi, dissecando os caminhos tomados, tentando perceber a interceção perdida, o cruzamento onde tomei a saída errada, a placa de sinalização que não li corretamente, a soma das pequenas coisas que me trouxeram aqui.

Agora, cheguei àquele sítio donde se vislumbra a juventude já lá longe, onde se revisita numa obsessão as músicas do passado e se sente um sofrimento indiscritível. E o indiscritível não é hipérbole, não é adjetivo metido sem contemplação – é coisa literal. Não sei realmente descrever os sentimentos que as memórias me provocam: ao rever a capa de um livro que comprei há vinte anos, ao falar de um episódio de vida que aconteceu há muito, ao falar de um local ao qual não regressei, ao ouvir as músicas que me destabilizavam e faziam vibrar naquela altura. Não é nostalgia, não é saudade, não é tristeza no sentido «duro» da palavra. É…

Há uns bons anos li o livro «Os anjos maus» de Éric Jourdan, um livro escrito pelo autor aos 16 anos. E se alguém quer perceber de que se alimenta esta angústia do envelhecer, bastará ler alguma coisa escrita por alguém muito jovem.

O envelhecer, este constante olhar para trás, não tem nada a ver com a perda da beleza, da firmeza, da decadência da parte física inerente ao passar dos anos (minto, tem algo a ver, mas não tanto assim), mas tem a ver com a perda de algo ainda maior, algo incomensuravelmente mais grandioso.

Não será o livro mais bem escrito que lerão, afinal foi um puto de 16 anos que o escreveu e a juventude é uma ode ao exagero, à impulsividade, aos extremos. A juventude é coisa sem elegância, sem respeito pelas normas, é ainda coisa de uma extrema ingenuidade do que ao viver diz respeito.

Mas é também, acima de tudo, um furor, um fulgor, uma paixão, um arrebatamento, um frenesi interior, uma crença in extremis no que está para vir.

Ler algo escrito por um adolescente ou jovem adulto é perceber que nenhum homem ou mulher de trinta, quarenta, cinquenta anos conseguirá replicar aquilo, conseguirá fazer transpirar para o papel a exaltação que é viver aos 16 anos. E todas as tentativas de trazermos até nós esta juventude perdida serão sempre ridículas, um plágio que nem plágio será de tão mal ataviado que é, uma crise de meia-idade grotesca, uma comédia de enganos para fazer rir à gargalhada o espetador.

E se ao ouvir aquele álbum que comprei há vinte e cinco anos as lágrimas me assomam aos olhos, não é pelos cabelos brancos semeados aleatoriamente, sem elegância, na minha cabeça, ou pelas rugas de expressão que imprimem um ar de cansaço à minha cara assimétrica, é por perceber que nunca, nunca mais irei ter fé no que está para vir, uma crença inabalável no viver, uma expetativa raiada de mistério, a paixão necessária para enfrentar o dia de amanhã.

E de todos os jovens que vejo, sinto-lhes inveja.  

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Os anjos Maus, Éric Jourdan, edição Bico de Pena, 2009.

 

Despojos de guerra - subtrações e adições

Há uns 25 anos, entrava numa sala de cinema numa qualquer tarde de uma dia de semana, no Monumental Saldanha, sozinha, para ver um filme. Estudava cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e, embora o cinema me fascinasse, o que realmente me tinha levado àquela escolha académica peculiar, fora a escrita. Alguma coisa que justificasse a ânsia, a necessidade, mas também a alegria de escrever.

Estava naquele dia, naquela sala de cinema, porque o meu professor de argumento aconselhara aos seus alunos um livro de screenwriting e aquele filme, o que me levara ali, tinha o argumento desse mesmo autor e argumentista.

Lera e relera o livro Story de Robert McKee e agora estava ali uma oportunidade de ver se o genial autor Robert era também um argumentista em condições. Embora, atenção, a capacidade de ensinar não tenha de estar em perfeita ligação cósmica com a capacidade de executar e o contrário também se aplica. Nem todo o executante será um bom professor na sua área.

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Story, Robert McKee (1997)

O filme “Wag the Dog – Manobras na Casa Branca”, era um filme que tinha como premissa inicial, um presidente, uma presidência de uma país, que cria uma guerra fictícia para desviar a atenção dos eleitores de um escândalo sexual, perto das eleições, um momento de extrema importância política. Temos uma guerra em estúdio, um herói de guerra, uma música de guerra, tudo a que um povo tem direito.

Trailer de Wag the Dog - Manobras na Casa Branca (1997)

O filme, com um elenco de luxo, ainda sob o ponto de vista atual, tinha quatro espetadores naquela sessão da tarde e daquele dia fica o insólito destes quatro (eu incluída) terem tentado sair da sala depois do filme ter acabado para logo descobrirmos que a porta da sala estava trancada. Nada de pânico, só gargalhadas, porque depois daquele filme, daquela história, do absurdo que todos os quatro pressentíamos que realmente não o era, mais nada restava senão rir. Seria possível descobrir o cinismo das nações, dos governos, num filme? Seria possível que o riso fosse de nervoso, um certo desconforto instalado, mais do que hilaridade espontânea?

Pois claro que era possível. A caminho dos meus vinte anos eu sabia que o mundo era bem mais do que aquilo que eu conseguia ver, mas acho que foram precisos mais de vinte anos em cima para perceber que, apesar de tudo, o que via e pressentia ainda se revestia de imensa importância.

Numa Europa em guerra, não faltam especialistas a observarem cruamente o conflito. Os EUA estão numa senda de cercar a Rússia, arranjando aliados fronteiriços, erigindo nestes novos locais posições privilegiadas, que deixarão ao Rússia numa posição desfavorecida. Uma pressão, que levou Putin a uma estratégia de proteção através do ataque. Ou… Putin é apenas um expansionista, um imperialista que pretende expandir os seus domínios e não se deixar dominar pelos imperialistas ocidentais. E a partir daqui soma-se mais uma dúzia de variações, algumas mirabolantes, outras com alguma coerência.

Linhas, linhas e mais linhas escritas. Horas de televisão, com argumentos de lado a lado. E se tudo, de um ponto de vista estratégico, como se jogássemos à batalha naval, faz todo o sentido, na prática é apenas obsceno. E, lamento, todas estas pessoas que falam de estratégia, peritos, militares, também o são. Obscenos!

E as pessoas? Os civis? Como diabo não entram as pessoas nas equações, nas análises, nos balanços analíticos daqueles que decidem e daqueles que analisam?

As pessoas entram nesta equação como números, em subtrações frias. Hoje, ontem e em todos os conflitos de que há memória. Mortos, feridos, refugiados, deslocados, migrantes, esfomeados, viúvos, órfãos, desempregados, desesperados.

Motivada por esta despersonalização dos conflitos, pela realidade das guerras “lá longe”, mas que pressenti que poderiam ser “cá perto”, por perceber que na realidade o lá longe e o cá perto não fazia qualquer diferença, porque as vítimas da crueldade da guerra eram sempre as mesmas, pessoas, o ser humano banal na sua luta diária banal, comecei a escrever o que demoraria mais de uma década a acabar – um livro sobre uma guerra em território nacional. Pelo meio, Susan Sontag, no seu Olhando o sofrimento dos outros faz-me perceber que, por mais que me esforce, não perceberei, jamais, o que as pessoas, aqueles que estão no meio de um conflito, sofrem, sentem. Perceber a minha ignorância, dá-me humildade. E a humildade anda de mãos dadas com a empatia.

 

“Um número e assim era a vida humana por aqueles dias. Um mero número numa equação que usava mais subtrações do que adições. Pensar que cada uma daquelas pessoas ali sentada a comer, cada uma daquelas pessoas lá fora, desde o recém-nascido aos idosos, homens e mulheres, civis e militares, rebeldes e não rebeldes, todos eles, sem exceção, nada mais eram  do que números. E numa fração de segundo poderiam transfigurar-se de um Um, num Zero, sendo que o transtorno causado por essa mudança não era para ali chamado. As equações não contemplavam sentimentos, os números não tinham nome nem passado e, claro, os Zeros nem futuro tinham.»

Vou para não ficar, Sónia Pereira

HHhH - Laurent Binet

O que aconteceu no passado, por lá ficou, calcinado, fossilizando na cadência do passar dos dias, das estações, dos anos, à espera que algum explorador, com meticulosas escavações arqueológicas, o traga novamente à luz do presente.


Mas nem sempre o passado adormece como uma criança despreocupada. Por vezes, estrebucha, luta na sua queda irremediável, lançando linhas de vida para o futuro. O seu aniquilamento, apesar de ser, em si, um fim, um ponto final, ecoará pelos tempos vindouros.


Lendo HHhH, quando estava a poucas páginas do final do livro, durante dias não consegui retomar a leitura que me levaria ao seu fim. O livro olhava-me da mesa de cabeceira e eu esquivava-me à sua interpelação. Eu sabia o que aquelas páginas retinham, a história que contavam, pois o livro fala de um episódio verídico, de pessoas reais, de momentos marcantes da nossa história recente que tiveram repercussões no nosso Agora.


Eu sabia, mas eu não queria ler, não queria ver a realidade ali escarrapachada. Certo dia, de livro na mão, como que desejei que a nossa história tivesse camadas de universos paralelos e que, ao virar da página, os dois paraquedistas checoslovacos, Cabčik e Kubiš, que em 1942 foram enviados em missão a Praga para matarem Heydrich, a besta loura, carniceiro do III Reich nazi, inventor da «solução final», conseguissem despachar o «carrasco de Praga», saindo incólumes, vivos e de saúde, sobrevivendo para nos contar pessoalmente os detalhes de tão arriscada operação.


Mas não foi isso que aconteceu. E se é certo que a nossa história está repleta de heróis que caíram de pé, alguns acabaram engolidos pelo esquecimento da rotina do tempo. Não esquecemos os vilões, os psicopatas, mas facilmente olvidamos os íntegros, aqueles que nos deram um presente.


O livro de Laurent Binet, HHhH (o cérebro de Himmler chama-se Heidrich), é uma espécie de homenagem aos heróis da operação Antropóide, que tinham como missão assassinar Reinhard Heydrich, figura proeminente nazi, considerado o homem mais perigoso do III Reich.


Numa escrita bastante original, o livro de Binet é também um ensaio sobre a literatura, sobre a abordagem literária aos factos históricos. Com a minha leitura terminada, o que sinto é que não foi um romance aquilo que li, mas sim algo híbrido entre a escrita literária, o ensaio sobre literatura, o diário de um autor atormentado e o relato histórico. As dúvidas do autor sobre como deve abordar as personagens, que na realidade não são personagens, mas pessoas reais, são explanadas durante o livro e o que chega ao leitor é esta vontade de não defraudar a memória daqueles que pereceram, contar a sua história sem falsificar a sua existência. Mas como passar ao leitor os medos, anseios, palavras ditas, frustrações sentidas por aqueles que já cá não estão para validar a veracidade de tais informações?!


Entre as batalhas pessoais do autor, as suas dúvidas e o anseio de uma homenagem à altura da importância das pessoas em questão, acho que conseguiu criar uma obra literária de valor, original, porque, acima de tudo, não é apenas um objeto literário, transborda em larga medida esse conceito.


Como apontamento final, ponto de resolução deste texto, deixo apenas umas quantas palavras que são um apanhado não só do livro, mas de cada minuto da nossa história e, assim, também da minha existência:


É surpreendente como o ser humano é capaz das coisas mais horrendas, dos atos mais inqualificáveis, de uma total ausência de empatia pelo próximo e, simultaneamente, dos atos de altruísmo mais inimagináveis, de resistir à tortura guardando em si a honra, a luta pelos valores irrevogáveis que o sustentam. A nossa história é isto, este puxar de corda entre uns e outros, entre seres monstruosos e seres de qualidades superiores, entre o prazer da dor infligida e o suportar estoico da dor sentida. Para os restantes de nós, resta o esquecimento, a rotina das horas que passam e se esgotam.

 

HHhH.jpg

HHhH, Laurent Binet, Sextante Editora.

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