Duzentos metros — excerto I
As idas à missa dominical eram rituais obrigatórios para a minha mãe quando criança. O padre da aldeia, personagem colorida pelos relatos natalícios destas sendas do passado, seria um fulano patusco, um estereótipo usado e abusado pelos programas de humor onde a personagem Padre da Aldeia é utilizada. Numa dessas missas de domingo, o padre, no seu sermão, recorda uma das ovelhas do seu rebanho que «partira» durante aquela semana. O bom do Sr. Manuel que um dia acordou morto fazendo a viagem para os braços do Senhor. A referência ao facto de um morto acordar morto divertiu parte das ovelhas do rebanho, outras tantas, embora fixando o padre como uns autómatos, não o ouviam, perdidas em pensamentos próprios, havia ainda aquelas que ouviam e não entendiam e as últimas que viam naquelas palavras uma bela metáfora (um acordar para uma nova vida, para uma existência celeste, o paraíso para o qual tanto tinham trabalhado). A minha mãezinha, apesar de jovem, seria uma menina perspicaz e aquela história de um morto acordar morto incutiu-lhe tamanha vontade de rir que, sentada no segundo banco corrido a contar do altar, teve de empreender grandes esforços para se controlar e não desatar à gargalhada. As cotoveladas da minha avó e o sibilar de ameaças ajudaram para que não perdesse a compostura por completo. «Põe-te quieta senão apanhas quando chegarmos a casa. Respeitinho pela casa do Senhor. Respeitinho pelo Sr. Manuel.» E a minha mãe, entre dentes, sussurrou-lhe em jeito de resposta: «Qual Sr. Manuel? Aquele que acordou morto?»
Se aquele comportamento valeu à minha mãe alguma achega com o cinto do avô ou a colher de pau da avó quando regressaram a casa não o sei, ela nunca o disse. Sempre preferiu a hilaridade da situação do Sr. Manuel às consequências do seu comportamento galhofeiro na missa.
Esta história de encher chouriços em noites de festa vem a propósito da minha própria situação. Não a meti aqui a troco de nada. A minha cabeça, ou o que quer que seja que move neste momento o meu discurso, o meu pensar, foi recolhê-la aos despojos do meu próprio passado porque tem uma afinidade desconcertante comigo. Também eu acordei morto. Sem metáforas religiosas nem discursos toscos de padres da aldeia. Morri e acordei. Morto.
(em Duzentos Metros, Sónia Pereira)