Ritos fúnebres
Fui a um funeral do pai de uma amiga na sexta-feira passada. A despedida de um pai, de uma mãe que falece prematuramente e de forma inesperada é sempre um momento de grande angústia e dor e este não foi diferente.
Entre o choro, preces religiosas, ramos de flores que iam e vinham, dei por mim a pensar nos ritos fúnebres, naquilo que fazemos, enquanto povo, como última despedida aos entes queridos. De país para país, temos variações da forma como ritos fúnebres são realizados e se algumas dessas diferenças serão mínimas entre certos países, noutras vezes são abismais, sendo que parte dessas diferenças, penso, serão motivadas essencialmente por questões religiosas.
De regresso àquele momento em que o corpo era velado na capela, à ambiência asfixiante, dei por mim a achar que a maneira como tudo por cá se processa é uma verdadeira provação, um massacre psicológico para a família enlutada. Se a pessoa é idosa e aquela morte era como um desfecho natural para uma longa vida, o rito talvez não se apresente como uma afronta, mas um encerrar ritual de uma vida. Quando a morte apanha a família e amigos desprevenidos, o ritual fúnebre assemelha-se a uma tortura a quem já está esgotado e rendido às circunstâncias da vida.
Um velório de dia e meio, em que o corpo morto do ente querido está ali, exposto no caixão, quase como um murro constante no estômago, um entra e sai constante de pessoas que vêm prestar as suas condolências, reacendendo constantemente aquela dor que começa a cair no conformismo, mas logo é obrigada a de lá sair. Daquelas horas intermináveis de confronto com a evidência da morte, poderei dizer que talvez aquela provação sirva para efetivar aquela perda quando ela ainda parece surpreendente. Tirando essa efetivação, aquilo que deveria servir de despedida, é apenas um flagelo interminável.
Depois chega a hora. O caixão é levado para a igreja e é realizada a missa de corpo presente. Sendo que a maioria da população é católica, por cá este ritual é bastante frequente e serão poucas as cerimónias fúnebres que não tenham uma missa realizada. Para mim, a cerimónia religiosa é impessoal, uma litania repetida ipsis verbis de funeral para funeral, onde apenas o nome do falecido muda. Para os crentes, talvez o ritual religioso lhes traga algum conforto e a cerimónia, apesar de impessoal, seja importante como garante de um desfecho daquela vida que cessou. Para mim, parece-me uma cerimónia oca, mas que marca um certo compasso entre o velório e o enterro. Uma espécie de antecâmara da ida do corpo para a terra, mas, enquanto cerimónia, muito aquém da homenagem, da despedida que aquela pessoa, ser humano único, mereceria.
No cemitério, chega o auge da provação. O caixão é novamente aberto, a família é confrontada com a evidência daquele ser o último vislumbre que terão do seu ente querido. Mas aquela última despedida, coisa pessoal, dor única, é modelada pelo fluxo de dezenas de pessoas que se vêm despedir do falecido e prestar condolências a familiares que estão já num extremo de agonia psicológica com expressão física. Mais umas quantas palavras impessoais do padre, o caixão é fechado e é levado para o túmulo, baixado à terra. E este será o auge da tormenta: a imagem do caixão a desaparecer no buraco.
A forma ritual como o pós-morte se processa serve apenas para amplificar a sensação de perda. No entanto, sendo que este ritual é repetido e conhecido desde a infância de todos nós, talvez os enlutados o vejam como uma provação necessária para o luto se consumar, a confirmação da perda se efetivar e a dor poder ser substituída pela saudade.
Quanto a mim, embora a morte seja o nada e pouco importe para aquele que morre a forma como o seu corpo é tratado e a forma como as despedidas são feitas, gostaria de algo diferente. Não quero esta agonia para aqueles que conheço e me amam. Até porque a morte, inevitavelmente, faz parte da condição de se estar vivo. Como tal, porque não transformar o ritual de índole dolorosa num ritual de despedida e memória? Um desfecho pessoal que exalte os bons momentos daquela vida que acabou ao invés de ser uma cerimónia de apologia à dor.