O mundo lá fora
Escrevo e escrevo-vos quase todos os dias. Não há nada de altruísta neste meu ato. Escrevo para me sentir menos só, como se falasse diretamente convosco sobre aquilo de que gosto, aquilo que me atormenta (mas apenas aquilo que é pronunciável. Os impronunciáveis não pertencem aqui. Não pertencem a lado nenhum). Transformo-me, aos vossos olhos, num ícone, num avatar que desfia palavras, num ser invisível, virtual, que existe apenas em forma de palavras e frases. Olhando para o meu avatar, poderão questionar-se se aquele meu grito (quadro de Munch) é um grito de desespero, de frustração ou antes um grito de libertação. Mas mesmo que vos apresente a minha fotografia, que daí poderão concluir? As minhas feições assimétricas, o meu nariz grande, os meus olhos míopes não vos revelarão os meus segredos. Com imaginação poderão tentar construir na vossa cabeça um personagem de ficção que na realidade não existe, mas a imaginação é isso, a massa consistente que tapa as fendas abertas de uma parede em ruínas.
No entanto, no mundo lá fora o erro repete-se. O corpo que sai de casa, cumprimenta este e aquele, percorre os corredores de supermercado, não será mais real do que o avatar virtual. As banalidades do dia-a-dia são incapazes de fazer descer a máscara, algumas conversas trocadas ao vivo terão menos substância do que os comentários de um qualquer blog. E, tanto umas como outras (as conversas virtuais e reais) são dirigidas não a mim, mas a um ser imaginado, um fantasma primo em terceiro grau da pessoa real. E de tudo isto, instala-se uma incompletude permanente. O virtual tenta encaixar no real para formar uma peça completa, mas, ainda assim, o puzzle continua incompleto, com buracos pelo meio.
Mas a vida deve ser isto (sem certezas): uma mente encerrada num corpo que ainda aprende (e fá-lo-á até morrer) a expressar os desígnios do seu prisioneiro, ainda aprende a comunicar com todos os outros encarcerados que o rodeiam.
Eu, por mim, continuarei a tentar.