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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Grandes e pequenos — livros

O tempo que se leva a ler um livro não está diretamente ligado à quantidade de páginas que o mesmo tenha. Não raras vezes devoro, de forma glutona, pecadora, um livro de quase 1000 páginas em pouco mais de uma semana, para logo depois andar à luta quase um mês com um livro com pouco mais de 100 páginas. O nível da linguagem usada, o tema, a fluência narrativa, tudo contribui para o tempo que leva uma leitura.

 

Hoje vou pegar aqui em dois exemplos que ilustram exatamente o que referi no parágrafo acima.

 

O Pintassilgo, da escritora estado-unidense Donna Tartt, vencedora do prémio Pulitzer com este mesmo romance, teve a sua tradução publicada em Portugal no último trimestre de 2014. Tenho ideia de que o comprei no início de 2015 e o comecei logo a ler. Apesar das quase 900 páginas do livro, demorei pouco mais de uma semana a chegar à última página e a terminar a leitura. Foi uma leitura obsessiva, que me levava a carregar o livro para todo lado, a aproveitar cada segundo para me embrenhar naquela trama. Este livro será o melhor exemplo para o que o termo anglo-saxónico page-turner quer definir. Quando me afastei do livro, permiti-me perceber que muito do que ali se passava facilmente poderia ser considerado inverosímil, quando aplicado à vida real (pode tanta desgraça, alterações drásticas de vida acontecer a uma única pessoa?). Mas a perícia de Tartt obriga-nos a entrar naquele mundo sem direito a olhares para trás e mais nada interessa para além de podermos acompanhar Theo na sua odisseia.

 

pintassilgo.jpgpintassilgo_2.jpg

O Pintassilgo, de Donna Tartt, Editorial Presença

 

 

Curiosamente, li um artigo que dizia respeito aos dispositivos de leitura de ebooks da Amazon. Estes leitores têm a capacidade de recolher informação e difundir essa mesma informação para a Amazon: qual a taxa de sucesso de leitura ou desistência de cada livro, que temas cativam mais os leitores. Contra todas as minhas expetativas, O Pintassilgo era o ebook lido em dispositivos da Amazon com a maior taxa de desistência de leitura. Mas como? Como raio alguém conseguiu deixar aquele livro a meio? Pegai já nele e leiam! Terão sido as 900 páginas um número instigador da desistência?

 

Em suma, Donna Tartt passa períodos muito longos de tempo sem publicar escrita de ficção, mas quando o faz, a leitura tem um poder quase sinistro de embrenhar o leitor numa bruma de obsessão. O trabalho que faz é meticuloso, demorado, com pesquisa associada e sem ponta de amadorismo.

 

Numa cadência de leitura oposta, dou o exemplo de um livro que acabei de ler há pouco. Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Escrito em 1902, é considerado um clássico da literatura, de leitura obrigatória. O livro fala de uma viagem ao Congo, país colonizado e explorado pelos seus colonizadores, que o foram estripando das suas riquezas como por exemplo o marfim, marginalizando e abusando dos habitantes nativos. Conrad baseia esta obra na sua experiência pessoal, pois também ele viajou por essa região anotando as suas observações num diário. O livro é mais denso do que conseguirei transpor neste texto. Para além das trevas de um país ainda emergido na «não civilização» (do ponto de vista ocidental), fala das trevas em que os seres humanos submergem quando se deixam levar pela embriaguez do poder, quando ficam entregues a si próprios num mundo primitivo.

 

trevas.jpgtrevas_2.jpg

Coração das Trevas, de Joseph Conrad, Nova Vega Editora

 

É impossível ler a prosa de Conrad com os olhos e preceitos da atualidade. É sempre imperativo perceber que se trata de um texto de 1902. O olhar sobre os outros, os indígenas, os seres considerados primitivos, selvagens, facilmente provocará o choque por, aos olhos de hoje, ser extremamente racista, inumano. No entanto, paradoxalmente, os relatos de Conrad são também uma espécie de murro no estômago que nos alerta para prepotência dos agentes coloniais e para o próprio racismo.

 

O livro exige uma leitura mais concentrada e mais refletida. A obra em questão tem 140 páginas, mas 24 delas são um prefácio de Isabel Fernandes. Considero ainda que as notas colocadas no texto acabam por ser excessivas, distraindo o leitor do corpo do texto para as notas de rodapé, que nem sempre são imprescindíveis e muitas vezes acrescentam pouco ou nada à leitura.

 

Comecei a ler o livro em novembro do ano passado. Parei a meio e li outro livro durante essa paragem. Retomei a leitura no início deste ano para a acabar no final da semana passada. As expetativas que tinha relativamente a esta leitura eram elevadas e acabaram por sair um pouco goradas. É um livro interessante, um ponto de vista sobre o colonialismo e os seus agentes, no entanto, ainda assim senti uma certa incompletude com esta leitura.

 

Grandes ou pequenos, numa leitura compulsiva ou refletida, os livros são parte essencial da minha vida. Alguns serão ainda peças de joalharia literária, artística únicas.

 

2 comentários

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    Sónia Pereira 14.01.2017

    Nos livros também tenho mais olhos do que barriga. Não leio tanto como gostaria, mas tento sempre dedicar pelo menos uma hora por dia à leitura. As novas tecnologias vieram desviar parte do tempo que antes dedicava a ler.
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