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Quimeras e Utopias

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A evidência física da morte

A vida é feita de uma composição de ambições, pequenos medos, pensamentos impronunciáveis, evidências avassaladoras que nos tolhem os movimentos ou nos impelem a agir impulsivamente, paixões secretas.

 

No que aos medos dizem respeitos, tento sempre fazer uma autoanálise daquilo que me incomoda, em jeito de psicanálise caseira, enfrentar os incómodos, confrontar ao invés de recalcar. Mas os anos vão passando e certos medos, que nem são bem medos, são algo revestido de uma substância de incompreensão em fina película de pânico, continuam a incomodar-me de forma inexplicável.

 

A evidência física da morte, o corpo morto, gera em mim tal desconforto que as minhas palavras não chegam para explicar o transtorno interno em que me vejo submergida.

 

Inicialmente, o mero vislumbre ao longe de um cadáver a repousar num caixão era coisa para me deixar insone durante semanas. Num contraste absoluto, nunca tive qualquer receio em escrever sobre a morte, a perda, o efeito do vazio deixado por alguém que parte. Não só nunca me senti desconfortável por discorrer sobre o tema, como é um tópico que me atrai. Uma adolescência tormentosa, pontuada aqui e ali por pensamentos suicidas tornou a morte uma personagem principal dos meus pensamentos existencialistas e dos meus escritos dispersos.

 

A morte, na forma abstrata, no vazio, não é um incómodo, mas a evidência física da morte continua a sê-lo. Com os anos, com a morte de dois avós, mas já com mais de três décadas vividas, comecei a conseguir conviver mais pacificamente com o corpo morto. Ver alguém prostrado num caixão durante um velório já não me tira o sono, já não me persegue em forma de terror noturno. Mas o toque… mesmo que a pessoa morta seja alguém próximo, um familiar que amo, cuja perda se faz sentir de forma aguda, criando um tornado de memórias, imagens do passado, reminiscências que fazem chorar e rir, nada me impele ao toque. E este medo do toque é de um absurdo que reconheço, mas não ultrapasso. Se era capaz de acariciar alguém apenas segundos antes da morte, qual a razão desta incapacidade de levar as minhas mãos às mãos daquele que ali jaz, morto, mas familiar?

 

Fotografia vitoriana .jpg

Fotografia da época vitoriana, onde era comum serem fotografados os familiares com algum membro da família falecido, como último (e muitas vezes único) registo do ente querido falecido. Fotografia tirada daqui. 

 

E esta minha fuga ao confronto com a prova terrena da morte, do fim, não se limita aos seres humanos, aos cadáveres homo sapiens. Qualquer cadáver me causa desconforto semelhante, seja humano, de um gato, de um cão, de um pássaro.

Há uns verões atrás, um melro fêmea embateu violentamente contra a porta de minha casa. Morreu instantaneamente. Era uma ave tão bela, que jazia ali prostrada no tapete, como se dormisse, sem que no seu corpo restasse qualquer evidência daquela morte súbita, violenta.

 

Normalmente é o meu marido que enterra os animais que têm fins semelhantes. Numa dessas «cerimónias fúnebres» de um melro atropelado, fez mesmo uma descoberta surpreendente que relato aqui. Dessa vez, a morte transmutou-se em vida.

 

Naquele dia, ele não estava em casa e a imagem da melrinha morta impelia-me a fazer alguma coisa. Não conseguia tocar-lhe, mesmo que entre o seu corpo e os meus dedos estivessem umas luvas, um saco, qualquer coisa. E todas as minhas tentativas só acresciam mais tormento ao já meu tormentoso estado. Consegui pegar-lhe com a ajuda de uma pá e enterrá-la e, ao colocar-lhe terra por cima, chorei como se ali jazesse um ente querido. Chorei de uma forma tão ridícula, tão ruidosa, como não chorei sequer quando os meus avós faleceram.

 

Saber o quão grotesco é o meu comportamento não o faz desaparecer. Obrigar-me a tocar, confrontando o meu medo absurdo, talvez aniquilasse de uma vez este receio, mas está para além do que neste momento me sinto capaz.

 

Os meus dedos, a minha mão quente, nos dedos frios, na mão pálida e sem circulação de alguém que partiu é, neste momento, um medo inultrapassável.

2 comentários

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    Sónia Pereira 07.03.2017

    É verdade que não olhamos para a nossa existência de um a forma natural, enquadrada na natureza. Daí a necessidade de necessitarmos de muletas como a religião para dar um "sentido" à vida, quando o verdadeiro sentido é esse - nascer, viver, morrer, como qualquer outro ser vivo. Pessoalmente, sou muito realista, vejo o mundo sem floreados e percebo a minha insignificância, o grão de areia que sou no cosmos, mas ainda assim esse medo irracional mantém-se.
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