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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Presságios do inferno na terra

Apesar de ser ainda manhã, a claridade da luz do sol filtrada por nuvens altas de fumo projeta sombras oblíquas fazendo crer que o crepúsculo chegou, que a luz do dia terminará em breve. A ambiência alaranjada, os trovões que soam ao longe, os fiapos de cinza que voam no ar como uma neve estival como que formam a descrição inicial de um romance de horror, uma história fantástica descrita pelos hábeis dedos de Allan Poe. A luz, as sombras deste dia, são como um prenúncio do mal que há de vir, porque a idade, as dezenas de verões vividos nesta terra, ensinaram-me que esta luz, esta claridade, é irremediavelmente um presságio, um inferno em aproximação. Não há vento forte acompanhado de calor que não degenere, não há verão que não cheire a queimado.

 

Este terror que este fim de semana chegou a todos os cantos do país, que extravasou fronteiras, que gerou comoção sem igual, é na realidade um pão nosso de cada verão para quem vive em localidades densamente florestadas. Isto que vos assusta, esta aparente novidade da morte pelas chamas, é para mim, tristemente, um sinónimo de verão. As lembranças deste medo, deste cheiro a fumo, das folhas carbonizadas de eucalipto a bailarem no ar, tudo isto me acompanha desde a infância. Recordo, ainda catraia, sair para o quintal num dia muito quente. O céu estava tão carregado de fumo, que o sol podia ser olhado de frente, sob o filtro negro e lá estava aquele disco alaranjado, como uma lua cor de laranja em plena canícula. Ao longe via-se a linha de fogo comer as árvores pela serra acima. Recordo ainda um dia em que a sirene dos bombeiros gemeu, em lamento, durante toda uma tarde. 16 bombeiros tinham perdido a vida a combater um fogo numa localidade próxima e aquele lamento sonoro foi como o choro coletivo. Aquele som das sirenes continua a gemer dentro de mim, a cada dia quente, a cada rajada de vento estival, a cada pequeno indício de fumo que me chegue ao nariz e aquele dia de há três décadas permanece vivo, viaja até à atualidade a cada novo incêndio.

 

Nada disto é novo, nada disto é culpa exclusiva de uns ou de outros, nada disto é sequer de fácil resolução. Somos dos países do sul da Europa com menor densidade florestal e, em contraste, com maior área ardida e ignições de incêndios. A questão prende-se com várias razões e só uma solução drástica poderá mudar que o verão seja sinónimo de cheiro a queimado. No entanto, mesmo a mais drástica das soluções só trará efeitos práticos visíveis a longo prazo. O meu lado realista diz-me que este inferno na terra, que me acompanha desde a infância, será coisa a que terei de me habituar e que me acompanhará até morrer e talvez com um crescendo de gravidade, dado as alterações climáticas potenciarem esta fúria do fogo.

 

Temos uma área florestal quase totalmente na mão de privados, muito parcelada, propriedade de  diversas pessoas diferentes. Recordo que os meus bisavós e avós consideravam que comprar pinhais (que por esta altura são eucaliptais) era uma forma de aplicar dinheiro e de mostrar ter-se posses. Uma herança por estas bandas inclui sempre uma bela quantidade de área florestal dividida em retalhos por zonas diferentes. Para quem herda este tipo de terrenos, é muitas vezes difícil sequer encontrar as extremas do seu próprio pinhal e os dividendos que dali pode tirar são tão escassos que não pagam sequer a limpeza do terreno. Depois, temos o forte lobby da celulose que, ao longo dos anos, transformou a diversidade florestal numa quase monocultura do eucalipto, árvore fósforo, espécie não autóctone. Por estes lados, junto ao rio, aparece também em abundância a acácia-austrália, árvore de bela floração, que pinta as margens de amarelo, mas também ela não autóctone, invasora. Em suma, não havendo qualquer ordenamento florestal, estando a floresta muito parcelada e em mãos privadas, apostando-se na monocultura e não se olhando à prevenção através da cultura de árvores «corta-fogo», e não havendo limpeza de mato, nem mesmo nas cercanias das habitações, o que temos junto às nossas casas é um barril de pólvora. Como li ontem numa rede social, viver junto a uma floresta é como ir dormir a sesta num paiol onde os trabalhadores fumam uns cigarritos e atiram as beatas para o chão.  Um verão sem catástrofe florestal é pura sorte, não é normalidade. Normal, normal, tendo em conta as características da nossa floresta, é isto. Se a este paiol se juntar as ações da natureza (trovoadas, ventos fortes), a mão criminosa e o desleixo, a explosão é inevitável, recorrente, tornando-se normalidade.

 

Quando entro em zonas densamente florestadas, quando passeio pelo meu concelho e a estrada é ladeada por eucaliptais a perder de vista, esta comunhão com a natureza deveria carregar consigo uma sensação de liberdade, mas é precisamente o inverso. A vivência nesta terra mudou significados, transmutou sentimentos básicos e a comunhão com a natureza, o cheiro das árvores, o vislumbre da mata a perder de vista, é opressiva, faz germinar o pânico, potencia o medo. E este sentido enviesado das coisas é, mais do que tudo o resto, profundamente triste.

Existencialismo primaveril

Ataques terroristas um pouco por todo o lado, manipulações informativas, jogos geopolíticos no médio-oriente, alegadas obstruções à justiça do presidente dos E.U.A., eleições no Reino Unido… Um tanto esmagador a acontecer que se transforma num nada. Um tsunami de acontecimentos que já me parece uma localidade varrida pela água, onde nada sobra, nada resta.

 

Olho para as 150 páginas que compõem a totalidade dos meus escritos para este blog e pergunto-me qual a relevância, a razão de ser destas palavras, o que acrescentaram, o que questionaram e a resposta não chega. Instala-se o vazio, a vontade esvai-se e todos os possíveis temas anotados no caderninho sabem a pouco, tudo aquilo que gostaria de dissecar parece carecer de substância. Mais vale estar quieta, não acrescentar ruído, observar e ouvir ao invés de matraquear.

 

Deixo-vos apenas dois pequenos fragmentos daquilo que ainda interessa. A natureza que não falha, alheia aos excessos humanos.

 

Andorinhas.jpg

Andorinhas a descansar no fio, preparando-se para novos voos acrobáticos.

 

Melro.jpg

Um melro fêmea a prescrutar a curiosidade dos seus observadores. No quintal, um som forte e repetitivo fez-nos imaginar que um pica-pau nos teria vindo visitar. Afinal, era apenas a senhora melra a bater com algo no muro. Supomos que fosse algum tipo de fruto, mas ainda é cedo para as nozes, fruto de casca rija que justificaria tal alarido. O que quer que fosse que ela tentava partir, arremesando contra o muro repetidamente, conseguiu. A seguir por ali ficou a refastelar-se com o seu repasto.

 

Nota: fotografais da autoria do meu marido, Pedro Neno.

Filmagens Quixotescas

A propósito da rodagem do filme «Quem matou D. Quixote» de Terry Gilliam no Convento de Cristo em Tomar e dos supostos danos causados durante as filmagens, ocorreu-me uma história que circulava quando, há uns valentes anos, trabalhava na área do cinema.

 

É certo e sabido que as aspirações de um realizador nem sempre se coadunam com o espaço «real» escolhido para a rodagem, daí muitas vezes ser preferível usar-se um cenário em estúdio a comprometer-se um espaço arquitetónico existente. Esta seleção dos espaços é uma dança a três: um realizador com imagens bem definidas na cabeça e que nem sempre mede as implicações da aplicação prática do seu projeto, a equipa de produção que sabe bem o aparato que uma rodagem envolve e todas as consequências (legais, por exemplo) de quebrar um contrato de cedência de espaço por danos causados e, por último, a instituição, empresa, particular, que cedeu o espaço sem ter, na maioria das vezes, bem consciência daquilo que está envolvido numa filmagem. Recordo, dos meus tempos cinematográficos, de haver uma completa estupefação por parte de quem alugava ou cedia espaços para filmagem, quando uma equipa lá aterrava carregada de material. Na cabeça de algumas pessoas, a filmagem envolveria uma ou duas pessoas com umas câmaras debaixo do braço e uns quantos atores. Quando o material começava a sair das carrinhas e camiões era ver os queixos caídos e os pensamentos a inundarem aquelas cabeças: «vão-me esfrangalhar o espaço com esta cangalhada toda.» Na realidade, é quase impossível tamanha quantidade de material e pessoas não implicar algum tipo de dano. Por muito cuidado que haja, é sempre «normal» alguma coisa partir, o chão ficar riscado, a pintura ressentida, algum vidro partido.

 

Mas de regresso à tal história, quando se falava em filmar em monumentos históricos, vinha sempre à baila uma história engraçada que nunca consegui aferir se era verdadeira ou apenas um daqueles mitos da profissão. Contava-se que um dos grandes realizadores da nossa praça (já falecido, mas um ícone cinematográfico) estava num palácio onde iria fazer uma filmagem, a explicar ao diretor de fotografia como queria filmar uma determinada cena. Na sala onde estava, explicava o movimento de câmara pretendido, enquanto ia andando para trás, imitando o movimento de um travelling (movimento de câmara sobre carris), até chegar a uma das paredes da divisão: a câmara vem, vem, esta parede é para sair, continuas a filmar, continuas.

 

Na altura, ríamos da tarefa que aquela equipa de produção tivera para explicar ao afamado realizador que «aquela parede» não podia sair. Na cabeça dele, a imagem perfeita não conhecia barreiras arquitetónicas, não poderia ser parada por uma parede. No mundo real, uma parede de um palácio centenário não poderia ser metida a baixo.

 

De regresso à notícia, a produtora portuguesa envolvida na rodagem do filme de Gilliam reconhece que a filmagem causou pequenos danos, que foram contabilizados. Algumas árvores foram cortadas com a devida autorização (supostamente não eram árvores autóctones e podiam ser retiradas e depois substituídas), algumas telhas foram partidas, algumas pedras foram danificadas e uma fogueira de grandes proporções foi feita com a presença dos bombeiros e devidamente autorizada em contrato.

 

Não duvido que, dentro do que foi contratado e daquilo que é o «normal» desenvolvimento de uma filmagem, a rodagem em questão tenha corrido dentro dos conformes. A questão aqui é outra: até que ponto é legitimo dar-se autorização (o organismo competente para tal) para uma filmagem desta grandeza dentro de um monumento património universal da Unesco?

 

Houve ingenuidade do organismo responsável que não compreendeu os reais meios envolvidos? Não houve ingenuidade, mas apenas displicência motivada pelo valor remuneratório generoso envolvido?

 

Um monumento destes não pode ser substituído se danos graves lhe forem infligidos e talvez a cautela devesse ser a filosofia a seguir no que à autorizações de filmagens e eventos neste tipo de espaços diz respeito. Havendo dinheiro, qualquer monumento poderá ser parcialmente replicado em estúdio. Já o original, se for gravemente danificado, só uma viagem no tempo o poderá reparar dentro das conformidades da época.

 

Covento de cirsto.jpg

Convento de Cristo em Tomar. imagem retirada daqui.

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