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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Mulher não entra

O Jornal Público e a revista Sábado decidiram fazer uma antevisão do novo ano, convidando um painel de opinadores para nos deslumbrar com uma visão masculina do que está para vir e do que deve mudar. Na revista Sábado, em seis comentadores, seis homens, no jornal Público, em dez almas providas da clareza de poder ver o futuro, dez homens.

 

Nas redes sociais (usei o plural, mas sou uma pobrezinha, só uso o Facebook), denotei um certo alarido como reação a estas escolhas das duas publicações informativas. Mas tudo terá uma explicação. Tenho a certeza que tanto o Público como a Sábado só escolheram homens porque não nos queriam incomodar. Lá devem ter julgado que, com o revelhão à porta, as senhoras estariam todas ocupadas a escolher a fatiota para a passagem de ano ou então, aquelas mais entradotas que ficam em casa a ver os fogos de artifício pela televisão, estariam já em laboriosos preparativos para o jantar (são entradas, prato principal e carradas de sobremesas, são as passas e o espumante). Depois, há que não esquecer a meda de roupa que está por passar a ferro, a outra montanha que está suja e que precisa de ser metida na máquina (temos de aproveitar o solinho para secar a roupa no estendal). E não esquecer que para a semana os miúdos já regressam à escola, o tempo escasseia e temos de os ajudar com os trabalhos de casa que os mandriões ainda não fizeram.

 

Aquilo foi tudo a pensar em nós, digo-vos. Aqueles diretores das duas publicações são seres altruístas, que pensam no bem-estar alheio. Iam agora desviar-nos das nossas tarefas domésticas para nos pormos a pensar no futuro?!

 

Haja alguém que pensa no nosso bem.

 

Sábado.gif

 Imagem retirada do site da revista Sábado.

 

Público.jpg

Imagem retirada da página do facebook «Mulher não entra».

Clickbait ou clickbesta?

É sabido que a forma como os meios de comunicação se financiam na era da internet mudou radicalmente comparativamente a tempos idos. Um jornal com a sua versão online pode disponibilizar informação privilegiada (e aprofundada) a assinantes, mas terá na publicidade presente nas páginas onde figuram as notícias de acesso gratuito uma importante fonte de receita.

 

Numa altura em que nós, leitores/consumidores de informação, nos habituamos a consumir informação grátis, consultando agregadores de notícias ou seguindo os meios de comunicação nas redes sociais, a notícia ao minuto, a urgência de ser o primeiro e captar a atenção do consumidor, leva muitos meios de comunicação a enveredar por caminhos duvidosos para ganhar o click do leitor, click esse que será revertido em receitas publicitárias (quantas mais visualizações de uma notícia, maior a receita e a capacidade futura de captar publicidade).

 

Essa necessidade intrínseca de financiamento, de converter um click em dinheiro, fez degenerar a informação em algo que estará já a anos luz do que a informação deveria ser. O clickbait (estratagemas para atrair o click) passou a ser a regra número um do jornalismo online. O título pode usar uma informação falsa que é contradita no corpo da notícia, quando se abre a página, o título poderá usar opinião como se fosse informação (mas só ficamos a saber que se trata de uma opinião depois de abrir a notícia), o título poderá dar relevância a uma informação de somenos importância, o título poderá citar um excerto de uma diálogo que ficará descontextualizado e sem nexo, o título facilmente usará um verbo no futuro (em jeito de adivinhação), criando uma notícia geradora de pânico injustificado).

 

Ontem um título de uma notícia do DN notificava que uma mulher tentara atravessar a ponte 25 de Abril nua, na madrugada de Natal. Abrindo a notícia, lá informava-se que o jornal Correio da Manhã noticiara que uma mulher tentara atravessar a ponte nua, mas que fontes da PSP desmentiram tal situação, informando que a mesma estava de pijama. Em suma, apesar do Diário de Notícias saber a verdade (a mulher estava de pijama), usou uma falsa notícia de outro jornal como justificação para atirar para título de uma notícia uma falsa informação. E esta perceção do estratagema usado era tão gritante que levou centenas de pessoas a comentar a falta de ética do jornal, mas o click estava dado, o potencial de receitas alcançado e amanhã é outro dia e já ninguém se lembrará da infelicidade daquele título. Posteriormente alteraram o título, substituindo a falácia pela verdade, mas o mal estava feito e durante horas gerou receitas.

 

Ontem, também, um outro jornal (Correio da Manhã) noticiava que a heroína estava na origem da morte de George Michael. Abrindo-se a notícia, lá aparece o verbo «poder» no futuro. A heroína poderá estar na origem da morte do cantor. O CM citava um jornal britânico que baseava a notícia na opinião de uma fonte próxima de George Michael (as fontes próximas nunca têm nome, são sempre anónimas e servem para tudo, para justificar qualquer notícia mirabolante que se queira impingir ao leitor).

Estes são apenas dois exemplos, mas diariamente é possível apanhar dezenas de meios de informação que usam o clickbait como forma geradora de receitas, ignorando por completo o propósito da sua existência — providenciarem informação fidedigna e imparcial. Mais grave ainda é a total falta de escrúpulos neste domínio. Muita desta informação errónea poderá lesar gravemente pessoas envolvidas nas situações noticiadas. Aquela mulher desorientada e sozinha que tentou atravessar a ponte a pé tem nome, terá família, poderá ter problemas sérios de saúde, mas nada disso contou no momento de impingir um título falso para atrair a atenção do consumidor ávido.

 

Em jeito de conclusão, questiono-me se serão os meios de informação que estarão a subverter a informação e, consequentemente, os leitores, ou a nossa avidez por espetáculo, escândalo e sordidez é que estará a moldar a forma da informação que consumimos.

 

Abriremos uma notícia com um título normal, honesto, realmente informativo ou acabamos sempre a escolher aquelas que parecem trazer no título a promessa de um filme de terror, desgraça e escarcéu?

 

Como dizia Artur Albarran ainda antes da informação online ser o que é hoje, mas abrindo já caminho para esta fome pela pirotecnia noticiosa:

 

É o drama, a tragédia, o horror.

 

Abstinência abortiva

Enquanto a Direção Geral de Educação sugere que as escolas, a partir do 5°ano, procedam a esclarecimentos em torno da temática do aborto, um partido da oposição sugeriu que aquilo que deveria ser discutido e difundido na escola era o conceito da abstinência e suas vantagens.

 

Falando da minha experiência pessoal, depois de anos a usar óculos fundo de garrafa, da baixa autoestima e de ser uma moça feiosa, mas com padrões de escolha masculina estranhamente elevados e inverosímeis, a disciplina da abstinência ficou logo dada sem necessidade de recorrer a um concurso de colocação de professores.

 

Em consequência de ter passado a essa disciplina com distinção, ficou abortada a necessidade de frequência da disciplina sobre interrupção involuntária da gravidez.

 

Isto de se ser uma adolescente perturbada é só vantagens para o erário público.

Bichos do meu quintal — terapia da abstração

Numa tentativa de abstração da «realidade lá fora», penso na natureza e nas suas mutações cíclicas, na ingenuidade das estações sobre os atos dos homens e suas repercussões, na simplicidade de ser pássaro ou ser planta.

 

Vivo numa zona rural, junto ao rio, o que gera uma convivência, mesmo que imposta, com toda a espécie de bicho. O pavor de insetos ou repteis, que algumas pessoas têm como fobia, seria coisa difícil de gerir no local onde vivo. No meu quintal e mesmo dentro de casa, estaciona todo o tipo de animal. Aranhas (algumas com um tamanho respeitável/assustador), centopeias (bicho que cisma que dentro de casa se está melhor do que lá fora), grilos, gafanhotos, caracóis, lesmas (no inverno, são mais que as mães), libelinhas, louva-a-deus, bicho-pau, pirilampos, lagartixas (muitas, centenas), lagartos, sapos e cobras.

gafanhoto.jpg

 

Pelo ar, esvoaçam melros palradores, gaios, gralhas chatas nas suas conversas estridentes, corvos, pardais, guarda-rios e, usando os galhos das árvores da beira do rio como pouso, duas garças. Estas últimas, chegam pela manhã, fazendo um voo baixo junto à água, fazendo-se anunciar com uns quantos grasnados. Finjo que me cumprimentam e respondo-lhes às saudações matutinas.

garça.jpg

 

Um dos habituais residentes do meu quintal era um sapo imponente. Viveu por aqui durante anos até ao verão passado. Desapareceu misteriosamente depois da visita de uma longa cobra de pele exuberante. Ter-lhe-á servido de refeição? Só a visitante fugidia poderá confirmar, mas é possível.

sapo.jpg

 

A exuberância da natureza nas suas diversas expressões ofusca por instantes a urgência do «caos lá fora». E só assim será possível conservar uma réstia de sanidade, coisa boa de se ter por esta altura.

 

Nota: Todas as fotografias são minhas.

Fake news? Who cares news!

Nas últimas semanas, as fake news tornaram-se tema de diversos artigos de opinião um pouco por todo o mundo. O potencial de algo que não é alicerçado e regido pela verdade poder controlar a opinião de milhares de pessoas e levar a sequentes ações infundadas das mesmas surgiu como algo surpreendente. Mas terá esta surpresa razão de ser ou a forma como consumimos informação, como a adquirimos já não era suficiente explícita sobre as nossas exigências (ou falta delas) e, como tal, óbvia nos efeitos perversos que daí poderiam advir?

 

Na realidade, se saltarmos da problemática das notícias falsas para a globalidade da comunicação, da difusão de informação, salta à vista o paradoxo em que estamos enleados. Com o acesso quase generalizado à internet, nunca como antes o acesso a quantidades surpreendentes de informação foi tão fácil. Mas, em completa contradição, tal imensidão de informação não nos tornou mais esclarecidos ou informados. Percebemos que a verdade, aquilo que deveria ser o único espartilho informativo, é uma espécie de conceito abstrato e que as palavras, a retórica, servem para modelar verdades aparentes. A retórica substituiu a investigação.

 

Pegando no exemplo da guerra da Síria, temos os meios de comunicação ocidentais a desenhar um retrato de situação em que Hassad aparece como o grande ditador, a origem de todos os males. Agora, no trono dos maléficos, juntou-se-lhe Putin e toda a tragédia de um país fica reduzida a duas personagens e uma única razão: a manutenção do poder de um ditador. Pouco se fala sobre o antes da guerra, as motivações geoestratégicas, económicas que poderão estar por trás do início e, principalmente, do continuar e perpetuar daquela guerra. Quem são os vários agentes envolvidos, quais os seus interesses?

 

Alguém deveria esclarecer, de forma cabal, que a gestão do mundo é feita de jogos de interesses. Nenhum governo ou agente se envolve numa guerra pela piedade pelos povos envolvidos, A piedade não existe, não gere dinheiro, não move interesses. O povo é um mero peão nestes jogos de tabuleiro. Os líderes mundiais não estão divididos em heróis e vilões. O mais provável é todos eles serem torpes, ignóbeis nas suas motivações.

 

Em confronto aos meios de comunicação ocidentais mainstream, é fácil ter acesso a informação que representa o confronto informativo E.U.A./Rússia. Em sites como o Sputnik, um diferente ponto de vista é apresentado para a guerra na Síria. Aqui, Putin desce do trono dos maléficos, a Hassad passa de ditador a presidente que tenta preservar o seu território e o seu povo dos invasores e os E.U.A., assim como o mundo ocidental como um todo, aparecem como a força geradora do mal. Aqui será possível recolher mais algumas informações sobre os «bastidores» da guerra, sobre as forças motivacionais da mesma. Mas, tanto nestes meios como nos meios informativos dominantes, o discurso é modelado por uma ideologia de base. Poder-se-á confiar inteiramente na imparcialidade da informação de algum destes meios? A meu ver, não.

 

Recolhe-se informação aqui e ali e no final fica-se com a sensação que a verdade se escapa entre dedos, que nada de sabe, que se observa a realidade sob uma cortina de fumo espessa.

 

Os meios de informação da atualidade sofrem de diversos constrangimentos que modelam a forma como o consumidor final chega à informação:

 — A urgência. Com milhares de agentes informativos, o que se torna mais relevante na notícia não é o seu conteúdo, a sua fidedignidade, mas a rapidez com que chega ao consumidor. E talvez a distorção, a modelação da notícia a um certo espetáculo informativo, a torne de escolha preferencial para aquele que a consome.

 

— A urgência, para além de levar ao empobrecimento da forma como a notícia é dada, tem ainda uma outra consequência: o fim da investigação. A investigação jornalística, levando tempo, acaba por se revelar inútil e perder interesse. O que é hoje relevante, é amanhã entediante. Não se justifica investigar, levar semanas e vários recursos humanos para pesquisar sobre seja o que for, quando a velocidade com que deglutimos notícias é tão acelerada.

 

— A notícia não é a verdade, é um produto e nós, consumidores. Como em qualquer outro produto, é regida pelas leis de mercado, pelo marketing, pela habilidade empresarial.

 

— Interesses económicos das corporações de comunicação. Grande parte dos meios de comunicação pertencem a grandes corporações. Será difícil esperar imparcialidade desses meios quando as empresas que os regem beneficiam de uma determinada visão da realidade. A informação vê-se reduzida a um espetáculo de emoções e pouco conteúdo informativo e de investigação; os recursos humanos são, por razões económicas, cada vez menos experientes. A informação cada vez se assemelha menos ao que se entende por notícia e mais a uma novela.

 

— Para além destes constrangimentos, a informação é ainda regida por uns certos dogmas geográficos, históricos, culturais. Aquilo que marcou o passado ocidental recente, como por exemplo a guerra fria, continua ainda a moldar a informação tanto no Ocidente como no Leste. Parece impossível desapegarmo-nos de uma certa construção histórica e observarmos para além disso, para além dessa visão maniqueísta construída durante décadas.

 

Os acontecimentos de ontem (homicídio do embaixador russo em Ankara, o provável atentado em Berlim, a guerra na Síria e seus intervenientes, os acontecimentos em Zurique) merecem assim uma aproximação sem preconceitos que inclua fragmentos informativos de vários quadrantes. A verdade é esquiva e só com uma observação menos ingénua, talvez mesmo cínica, se consiga ver para além da cortina de fumo informativa.

 

 

Ankara.jpg

 

Ankara II.jpg

 Imagens de Burhan Ozbilici/AP.

Sonhos estranhos II

Como já referi num outro post, é difícil recordar os sonhos que me acompanham enquanto durmo. Mas hoje, ao acordar, lembrei o que terá sido o último sonho da noite e logo dou por mim a pensar: mas que porra foi esta?!

 

Mas esta madrugada terá sido propensa a sonhos absurdos (não os serão todos?!) entranhados na realidade, porque já hoje de manhã dou de caras com um post de um colega bloguista também a relatar as suas estranhezas oníricas. Algum vento do norte trouxe para o dia as reminiscências noturnas.

 

No meu sonho, estava em casa de duas pessoas que não conheço pessoalmente, dois «amigos» recentes do Facebook. Ela, uma mulher linda e muito inteligente (a minha inveja facebookiana) e ele um jornalista perspicaz e em cima do acontecimento que tem a capacidade de facultar novos pontos de vista sobre variados acontecimentos nacionais e internacionais. Nunca falei com nenhum deles, o «relacionamento» limita-se a uns likes nos posts de ambos. Ele é bem mais velho do que ela, ela a personificação de um eu pessoal por mim idealizado. Que eu saiba, não se conheçam na realidade e talvez nem sequer sejam amigos virtuais. No entanto, no meu sonho, eram casados e ela exibia uma magnífica barriga de grávida, proeminência arredondada e bonita num corpo escultural. Eu estava, juntamente com o meu marido, na casa dos dois para os acompanhar a uma peça de teatro. Também lá estavam outros amigos, meros figurantes no filme. Lembro-me de me sentir constrangida — a inteligência da moça, que me leva a invejá-la, faz-me também sentir fortemente a minha mediocridade — mas ela de tudo fazia para me colocar à vontade e aligeirar o ambiente de forma a que não me sentisse excluída. Estávamos todos numa sala, numa conversa que servia de preâmbulo à saída para irmos ver a peça de teatro na qual eles os dois, marido e mulher, tinham algum tipo de participação.

 

Após aquela confraternização, acordei ainda embrulhada na estranheza dos meus vagueares oníricos. Quando, passadas umas horas, abri o Facebook, o primeiro post que me apareceu foi dela e logo o seguinte, um dele. Sorri pela aparente perseguição da história noturna e pelo recordar das narrativas retorcidas que se formam dentro da nossa cabeça enquanto estamos a dormir.

 

E no ar, fica a pergunta: mas que porra foi aquilo?

A blast from the past

Recebi uma mensagem, há dois dias, de uma amigo e antigo colega de faculdade. Já não nos vemos pessoalmente há mais de quinze anos, mas volta e não volta vamos trocando umas mensagens pelo Facebook. Desta vez, ele estava a contactar-me porque tinha encontrado, entre as tralhas lá de casa, uma cassete VHS com umas filmagens que tinha feito no nosso tempo de escola. Enviou-me o ficheiro com o filme para eu poder ver e recordar.

 

Achei graça ao gesto e estava à espera de me rir um pouco com as imagens da minha/nossa inocência, com o ar de cromos que todos tínhamos, com aquela arrogância típica da juventude. Seria um momento de pura galhofice. Mas não foi isso que aconteceu.

 

Estudei cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e aquela filmagem do meu amigo (uma filmagem com 18 anos) era uma espécie de making off de um filme que fizemos como projeto escolar. Estávamos lá quase todos os colegas, estava também um jovem colega do curso de teatro (que hoje é um reputado ator, reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho) e uma atriz profissional que tínhamos convidado e que gentilmente aceitou o desafio.

 

Quando abri o ficheiro e o filme começou a rolar, senti um baque absurdo dentro de mim. Ali estava eu, jovem, a perseguir um qualquer sonho abstrato de contornos irrealistas e desconexos, ali estavam os meus colegas. Passei três anos da minha vida com aquelas pessoas, via-as quase todos os dias, troquei confidências e aspirações com algumas delas. A alguns deles, sentia-os  como a minha família na ausência da minha própria família.

 

Percebi, com uma certa dor, que elas simplesmente desapareceram da minha vida, sem rasto, como algo que não vemos, só escutamos o eco muito ao longe. O fumo que vemos a pairar de uma fogueira que não conseguimos vislumbrar por entre as sombras. Numa era anterior às redes sociais, os primórdios da internet, o contacto com a maioria deles perdeu-se (daquelas vinte e tal pessoas, tenho contacto esporádico com apenas duas). Alguns deles nem sequer recordo o nome e, não fosse o vídeo, mesmo as fisionomias já se tinham dissipado da minha mente.

 

Dei por mim a pensar em todas as pessoas que já estiveram, fizeram parte do meu dia-a-dia e que já não vejo e que recordo vagamente por entre as brumas da memória. Que será feito de todas elas? Estarão vivas? Serão felizes? Recordar-se-ão de mim?

 

Todas as pessoas que passaram por mim são, de certa forma, contributos para o puzzle que sou neste momento. Cada uma delas forneceu a sua pequena peça para a minha construção e há algo de trágico no esquecimento daqueles que, de alguma forma, fazem parte da minha fundação enquanto pessoa.

 

A suposta galhofice transformou-se numa nostalgia agridoce, num novelo de sentimentos ambivalentes. Rostos que voltaram, como fantasmas, ao meu presente, e o meu próprio rosto a cometer um erro, a persistir numa falha que modelou irremediavelmente o meu futuro.

 

Mas a vida deve ser isso: um andar para a frente com pequenos vislumbres para trás. Se insistirmos nesse voltar de cabeça para o passado, ainda tropeçamos e caímos.

 

Os Biebers desta vida

Quando os anos nos começam a cair em cima, vindos mais depressa do que os conseguimos assimilar, a adolescência vai-se distanciando e damos por nós a criticar inevitavelmente certas «fraquezas» da juventude.

 

Lá estou eu a olhar para as fãs de Justin Bieber e a abanar a cabeça em tom reprobatório. Onde raio têm aquelas miúdas a cabeça. O mocito é fraquito, parolo e malcriado. Não há por aí mais nada de jeito que justifique tanta gritaria, horas de espera ao frio, delírio coletivo?!

 

Depois recordo a minha fútil paixão adolescente e calo-me. O mais certo é todos nós termos um Bieber nas nossas vidas do qual, passados anos, ainda gostamos secretamente. Uma paixão envolvida em vergonha, que só a custo confessamos.

Lisa Gerrard — deusa do meu Olimpo

É impossível ficar-se indiferente perante a voz de Lisa Gerrard. Até pode ser que se odeie, mas o ímpeto perante a sua música será sempre visceral, nunca neutral.

Conheci Lisa Gerrard através da banda sonora do filme Gladiador e a partir daí foi um desenrolar de um novelo de emoções, de uma quase estupefação perante a capacidade vocal da cantora/instrumentista/compositora.

Se é possível encontrar contributos fantásticos em bandas sonoras tais como em Gladiador, Man on Fire, Ichi, Schindlers list, os seus trabalhos a solo ou em colaborações selecionadas acabam por me transcender, a meu ver, os trabalhos nas trilhas sonoras de filmes. Há uma certa transgressão, uma voz que funciona quase como uma entidade autónoma da música, há ainda ma gestão fabulosa dos tempos, dos silêncios, um domínio completo da voz sem que pareça exibicionista, fazendo da experiência de a ouvir uma espécie de revelação espiritual, metafísica.

Lisa Gerrard é australiana e, para além dos já referidos trabalhos a solo, com colaborações e em diversas bandas sonoras, fez parte da banda Dead Can Dance, um projeto musical iniciado por Lisa e o irlandês Brendan Perry (com quem esteve casada durante vários anos) em 1981, em Melbourne, na Austrália. O último álbum da banda foi em 2012, já depois de várias saídas e entradas de músicos na formação inicial dos Dead Can Dance, assim como de algumas interrupções de anos.

Tentei selecionar duas músicas para aqui colocar, mas gosto de tantas que estive para aqui a debater-me sobre quais escolher. Assim, fica o tema principal do filme Gladiador, um tema de Lisa Gerrard e do compositor Hans Zimmer.

 

Now we are free. Hans Zimmer e Lisa Gerrard, para o filme Gladiador, realizado por Ridley Scott, 2000.

 

Deixo ainda uma das músicas que prefiro de Lisa. O clip não é o vídeo oficial da música, mas acho-o muito bem conseguido.

 

Redemption II, álbum Black Opal, Lisa Gerrard. Imagens retiradas do filme A paixão de Cristo, realizado por Mel Gibson.

 

Aleppo

Chove lá fora, uma certa melancolia tomou conta de mim. A presença da árvore de Natal com as suas bolas e enfeites coloridos não me desperta grande alegria, o chá quente que sorvo em pequenos goles não me consegue aquecer, a música que ouço, selecionada já sob o espetro do abatimento, consegue apenas cumprir a função de me fazer saltar lágrimas dos olhos.

 

Não choro pela minha miséria pessoal. Apesar desta me parecer, certos dias, gigante, um parasita com o qual não consigo lidar e enxotar para longe, ela é um nada, um grão de pó quando comparada com misérias que correspondem à verdadeira aceção da palavra.

 

Em Aleppo, a população que resta foge. Homens, mulheres, crianças. Estima-se que só nos últimos dias 70.000 pessoas tenham abandonado a cidade. As batalhas terminaram depois das forças pró-governamentais terem conseguido recuperar o território. Do acordo celebrado entre o governo sírio, seus aliados Rússia e Turquia e as forças rebeldes, que prevê a retirada de feridos e civis, assim como os combatentes e as suas armas ligeiras, espera-se que o mesmo seja cumprido com integridade e não se resuma a mais uma mão cheia de assinaturas em troca de nada, onde os civis são o eterno perdedor.

 

Aleppo.jpg

 Aleppo (imagem retirada do site do Diário de Notícias).

 

Nas últimas três semanas, as semanas que durou a ofensiva governamental apoiada pela Rússia, há relatos de execuções de civis por parte das forças ofensivas que combatiam pela recuperação da cidade. Pessoas executadas sumariamente, casa a casa, abatidas como uma mosca incomodativa.

 

A cidade de Aleppo não se pode continuar a chamar uma cidade. É um monte de entulho onde repousarão certamente corpos mortos, pedra caída sobre pedra caída, parede esburacada sobre pertences pessoais que contam uma história de vida, feridos a agonizar, pessoas em pânico em rota de fuga para regiões vizinhas.

 

Uma guerra onde não se pode fazer observações baseadas em valores maniqueístas — não temos os bons, os maus e os vilões. Todos os intervenientes e as suas motivações, sejam elas óbvias ou obscuras (escapando à maioria dos que absorvem as notícias que lhes metem à frente), não saem com a moral incólume. Todos eles têm as mãos manchadas de sangue de civis inocentes.

 

Por cá, continuamos as nossas compras de Natal, a escolha do menu para a ceia natalícia, o contar dos dias que faltam para as férias para aqueles que as terão, a ânsia de poder saborear os doces típicos de uma quadra. A nossa alegria tem alergia à miséria alheia.

 

Como não sabemos o que fazer para resolver o problema ou como não nos interessa sequer conhecer o problema, jogamos a carta máxima da nossa indiferença.

 

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