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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

Vou para não ficar (excerto V)

Em pé, em cima das muralhas, descalço-me com todo a cuidado. Sinto o toque áspero das pedras na sola dos meus pés sujos. Tiro todos os farrapos que trago vestidos. Com um impulso desajeitado, atiro-os ao vento e aqueles panos gastos e descoloridos parecem pássaros gigantes desengonçados a tentar o voo pela primeira vez. O sol descreve um semicírculo descendente mesmo diante dos meus olhos. A minha sombra faz-me lembrar um corcunda invertido. Uma protuberância arredondada a marcar uma figura de extremidades esguias, quase esquecidas pela sombra. Inspiro fundo e sinto o pulsar deste sítio. Pedras postas sobre pedras há centenas de anos, partes de um puzzle há muito desfeito e de aparente irresolução, árvores que se agarram à terra cada dia com um pouco mais de força, o sibilar de um réptil por entre a vegetação, o vale num declínio perfeito. Um bando de pássaros cruza o céu numa coreografia síncrona. 

Por momentos, o impulso de erguer os calcanhares, fletir as pernas, abrir os braços dominou-me e o mantra do teu nome foi substituído por outro. «Salta. Salta. Salta.» Imaginei-me a sobrevoar o vale, o rebanho de ovelhas entre o arvoredo, subir num voo que rasgava o ar quente, me envolvia, contornar o rochedo em forma de cabeça de velho, o pequeno cemitério e deixar-me estar a boiar, dormente, nesta tarde quente, sentindo os avanços do sol no céu sem nuvens.
Estou completamente nua nas muralhas de uma aldeia histórica. Essa evidência, que irrompeu na minha mente como um pensamento sem importância, refreou-me os impulsos de voo. Caminharei para a loucura, mas sei que ainda lá não cheguei, caso contrário esta perceção de nudez nada provocaria em mim. Nem perceção seria.

 

(em Vou para não ficar, Sónia Pereira)

Vícios

Roo as unhas. Faço-o desde pequena. Recordo brincar no jardim lá de casa, roendo as unhas distraidamente e um vizinho, perante a minha imagem de roedora compulsiva, me dizer que tinha de parar de o fazer, garantindo que quando crescesse ia querer ter as unhas grandes para poder pintá-las. De forma desafiadora, garanti que isso nunca iria acontecer. Aquele meu hábito não se afigurava como um problema na altura e pensar a longo prazo, numa idade adulta ainda tão longínqua, era tarefa impossível.

 

A minha mãe experimentou técnicas que terminassem com o meu mau hábito, comprou vernizes que sabiam mal para me desincentivar à roedura. O sabor amargo do verniz deveria impedir-me de continuar a repetir a façanha, mas não o fez, até porque grande parte da destruição das minhas unhas não é feita pelos dentes. Uso as unhas para destruir unhas e só, em desespero, uso a dentição para ajudar à festa.

 

Chegou a adolescência e o vaticínio do vizinho começava a concretizar-se. As unhas desfiguradas nos meus dedos davam-me vergonha. Queria poder tê-las maiores, arranjá-las, pintá-las como a maioria das raparigas fazia.

 

Agora, adulta, consigo impor a minha vontade, mas só em pequenos períodos de tempo. Permito-me estar um par de meses sem roer as unhas, deixá-las crescer, pintá-las. Normalmente, no verão, a minha vaidade vence o vício e consigo ter as unhas com um aspeto apresentável. Mas é uma batalha diária, um constante contrariar de uma vontade primitiva de rasgar a unha, fazer sangrar a pele. Basta uma unha lascar um pouco para que um qualquer impulso interior me incite à destruição das restantes.

 

Há um certo consolo masoquista na dor de uma unha roída até ao sabugo. Aquela dor cortante, pequenas agulhas que parecem rasgar o dedo por dentro, acompanhada de um latejar que se torna o centro das atenções — dói, incomoda, mas é uma espécie de prova de vida. Uma dor que apazigua, um pequeno sofrimento físico que amaina uma qualquer ânsia que necessita de ser acalmada.

 

Pergunto-me se consigo trocar este pequeno prazer doloroso por uma contínua ânsia e por uma constante oposição a uma vontade interior intrínseca. Acho que não.

 

E o vício é isto. A cedência em troca de um prazer, mesmo que este seja considerado ilícito, incompreendido.

 

unhas.jpg

 

Natal ateu

Apesar da minha educação cristã, de ter crescido e vivido no seio de uma família católica praticante, desde há quase duas décadas que me afastei da religião até ao ponto de me considerar ateia. Recordo o grande conflito que nessa altura residia em mim. O choque entre aquilo que defendia enquanto valores inalienáveis e os dogmas religiosos, o conflito entre a crença imposta e aprendida e a visão racional com que tendia a ver o mundo.

 

Tirei a religião da minha cabeça, mas é impossível remover por completo a religião da minha vida. Sendo os portugueses maioritariamente católicos no que à crença religiosa diz respeito, a religião está presente nas festividades e cerimónias que se celebram, nos cumprimentos que se trocam entre familiares e amigos, nas atividades escolares dos filhos, etc. Embora deva referir que esta religião entranhada no nosso dia a dia seja já uma religião degenerada, moldada aos tempos atuais de cariz mais consumista e festivaleiro.

 

Quando me confrontam com a minha hipocrisia em celebrar de alguma maneira o Natal quando me assumo como alguém que não tem qualquer religião, confesso que não sinto qualquer paradoxo nas minhas ações. Vivencio o Natal como uma festa da família, uma partilha de momentos entre pessoas que se amam, a tradição de passar o dia com a minha mãe a preparar receitas antigas de doces caseiros, o jantar galhofeiro com a família em que rimos, bebemos e contamos histórias já repetidas até à exaustão, mas que continuam a arrancar gargalhadas.

 

A minha falta de culpa tem a sua raiz nas vivências da generalidade dos portugueses e cidadãos ocidentais. Mesmo aqueles que se dizem católicos ou cristãos há muito que subverteram aquilo que a religião primariamente definiu que o Natal deveria ser. Esta quadra transformou-se num manancial de decorações coloridas, luzes brilhantes nas avenidas das grandes cidades, compras compulsivas de presentes (facilitadas por promoções típicas da época), num consumismo desenfreado mesmo a nível alimentar. Comprar muito, oferecer muito, comer muito, decorar muito.

 

A celebração familiar que faço, desprovida de qualquer estravagância, intimista e pouco consumista (só a criança da casa costuma ter direito a presentes), pode ser chamada de qualquer coisa, mas é o meu natal, um natal da família que pode ter no seu seio pessoas com diversas crenças e pontos de vista.

 

E como uma festa pagã na antiguidade foi lentamente transformada numa festa cristã, também o meu Natal católico da infância foi transformado numa festa de celebração da família que, para mim, já não tem qualquer susbtância religiosa.

Duzentos metros — excerto I

As idas à missa dominical eram rituais obrigatórios para a minha mãe quando criança. O padre da aldeia, personagem colorida pelos relatos natalícios destas sendas do passado, seria um fulano patusco, um estereótipo usado e abusado pelos programas de humor onde a personagem Padre da Aldeia é utilizada. Numa dessas missas de domingo, o padre, no seu sermão, recorda uma das ovelhas do seu rebanho que «partira» durante aquela semana. O bom do Sr. Manuel que um dia acordou morto fazendo a viagem para os braços do Senhor. A referência ao facto de um morto acordar morto divertiu parte das ovelhas do rebanho, outras tantas, embora fixando o padre como uns autómatos, não o ouviam, perdidas em pensamentos próprios, havia ainda aquelas que ouviam e não entendiam e as últimas que viam naquelas palavras uma bela metáfora (um acordar para uma nova vida, para uma existência celeste, o paraíso para o qual tanto tinham trabalhado). A minha mãezinha, apesar de jovem, seria uma menina perspicaz e aquela história de um morto acordar morto incutiu-lhe tamanha vontade de rir que, sentada no segundo banco corrido a contar do altar, teve de empreender grandes esforços para se controlar e não desatar à gargalhada. As cotoveladas da minha avó e o sibilar de ameaças ajudaram para que não perdesse a compostura por completo. «Põe-te quieta senão apanhas quando chegarmos a casa. Respeitinho pela casa do Senhor. Respeitinho pelo Sr. Manuel.» E a minha mãe, entre dentes, sussurrou-lhe em jeito de resposta: «Qual Sr. Manuel? Aquele que acordou morto?»

Se aquele comportamento valeu à minha mãe alguma achega com o cinto do avô ou a colher de pau da avó quando regressaram a casa não o sei, ela nunca o disse. Sempre preferiu a hilaridade da situação do Sr. Manuel às consequências do seu comportamento galhofeiro na missa. 

Esta história de encher chouriços em noites de festa vem a propósito da minha própria situação. Não a meti aqui a troco de nada. A minha cabeça, ou o que quer que seja que move neste momento o meu discurso, o meu pensar, foi recolhê-la aos despojos do meu próprio passado porque tem uma afinidade desconcertante comigo. Também eu acordei morto. Sem metáforas religiosas nem discursos toscos de padres da aldeia. Morri e acordei. Morto.

 

(em Duzentos Metros, Sónia Pereira)

Psicoterapia caseira

Quero acreditar que todos os seres humanos têm comportamentos que, quando confrontados com a lógica da «normalidade», não fazem muito sentido ou são motivados por emoções mesquinhas e pouco razoáveis. Dou por mim muitas vezes a fazer uma espécie de autoanálise, tentando compreender certas condutas ou pensamentos que me pareceram deslocados ou infundados. Porque falei assim com certa pessoa, porque sinto isto ou aquilo relativamente a dado acontecimento, porque fico melindrada com algo que não me diz respeito. Esta psicoterapia caseira sempre me pareceu fazer mais sentido do que a consulta de um profissional.

 

Não nutro qualquer antipatia pelos psicólogos ou psicoterapeutas, mas a imagem mental que monto na minha cabeça de uma consulta num destes profissionais não me proporciona qualquer conforto. Eu a falar das minhas misérias pessoais, a desfiar um rol de emoções e pensamentos obscuros a um estranho, enquanto o terapeuta, já fartinho de ouvir ladainhas do mesmo género, dilemas indiferenciados, pensa no que vai fazer para o jantar, se desligou o ferro de engomar ou se deu comida ao gato antes de sair de casa.

 

Claro está que nem todo o comportamento é facilmente solucionado ou compreendido através da terapia caseira. Talvez a ajuda de um profissional não fosse má ideia, me ajudasse a saltar a cerca do até agora intransponível. Mas para quê compreender ou mudar algo que, embora «anormal», me é característico, me define enquanto pessoa?

 

Tenho quase quarenta anos e desde os meus quatro anos (altura em que a minha irmã nasceu) que durmo com um boneco. É fácil de imaginar o estado em que se encontra um peluche com 34 anos que foi abraçado e afagado diariamente durante todo esse tempo. Quando há uns tempos o mostrei a uma amiga de infância que, sabendo da minha obsessão, me perguntou por ele, ela ficou a rir durante cinco minutos perante a visão do boneco desconjuntado.

 

Nenhuma mudança na minha vida conseguiu arredá-lo da minha cama. Cresci, casei, tive um filho, mas o boneco continua a repousar junto ao meu peito todas as noites. O meu marido ainda sugeriu que o guardasse como recordação de forma a preservá-lo, pois o estado esfiapado em que está é realmente alarmante. Mas nada ou ninguém consegue tirá-lo dos meus braços. Desde há uns anos para cá, passei a deixá-lo em casa quando viajo. Tenho medo de me esquecer dele em algum hotel ou de o perder se as malas se extraviarem num qualquer aeroporto. Mas esta é mesmo a única cedência que faço no que diz respeito ao afastamento do meu querido boneco.

 

Se é estranho uma mulher adulta dormir com um peluche esfrangalhado? Talvez seja. Ainda há umas semanas li um artigo que associava o autismo a essa dependência de um boneco ou objeto por parte de um adulto. Talvez a minha dependência tenha uma explicação médica ou psicológica qualquer, mas este ser dependente de um pedaço de tecido e linha de coser sou eu e este eu não quer saber de certas estranhezas, de certas anormalidades. Até gosta delas.

Vou para não ficar (excerto IV)

Lembro-me perfeitamente dela. Enquanto corro atabalhoadamente por entre as árvores, mal vejo onde ponho os pés. Nos locais onde a erva ainda está molhada devido ao orvalho noturno, o solo parece manteiga e nem consigo perceber como, das duas vezes em que escorrego, acabo por me equilibrar e não cair. 

 

Ouço a minha respiração rápida, um grunhido descompassado que facilmente se destaca do ambiente praticamente estático da floresta. Corro e não sei se é devido ao som da minha própria respiração, aquele som que terrivelmente se assemelha ao arfar de uma fera acossada que foge do seu predador, começo a sentir medo. Até àquela altura, talvez devido à adrenalina, o desconforto do medo ainda não me tinha tocado. O medo, para além de desconfortável, desconcentra. A minha cabeça enche-se de imagens e corro por correr, conduzido por uma qualquer capacidade inconsciente, automática, pois não vejo o caminho, não tomo decisões.

 

Lanço um olhar para trás, sem parar de correr. Aquela figura de contornos claros em fundo castanho esverdeado desperta em mim, por segundos, uma pontada de erotismo. Não paro de correr e volto a olhar para a frente. Tronco caído, desvio-me. Umas quantas pinhas espalhadas, dou um salto. Durante esta prova de perícia, entre movimentos instintivos, ocorre-me o quão estranho é este aperto de peito que sinto. Medo embrulhado num fino papel de luxúria.

 

Lembro-me dela como se tivesse sido ontem. Ela não foi a única, mas, talvez por ter sido a primeira, ficou-me na mente. Recordo cada detalhe daquele dia. Um intenso odor a pólvora que se impregnara em mim, um zumbido constante de gritos e lamúrias, os guinchos agudos da mãe dela, a euforia, aquela doce sensação de invencibilidade, de se ser um pequeno e poderoso deus, o olhar de desafio do irmão, as minhas mãos enterradas na massa de cabelo dela, as coxas peganhentas e quentes… Não o recordo como uma memória pessoal, mas como se recordasse detalhes de uma vida alheia. Não que estes rasgos de psicologia barata me inocentem do que fiz. Eu sei o que fiz. Mesmo que agora, em retrospetiva, me pareçam atos de um louco, fui eu. Eu, que ia para a faculdade. Eu, que jogava futebol aos sábados à tarde. Eu, que ia acampar com os amigos nos festivais de música de verão. Eu, que adorava os almoços de domingo em família. Eu, o mesmo eu que agora corre, o mesmo eu daquela tarde que agora recordo em imagens gráficas. Eu.

 

Ouço um estrondo percorrer as árvores e ainda os pássaros não se puseram todos em debandada devido ao impacto sonoro, já aquele barulho tem uma repercussão dolorosa na minha coxa esquerda. Um tronco podre deitado no chão torna-se o acorde final desta minha fuga. Tropeço e caio de barriga para baixo. O cheiro da terra húmida faz-me fechar os olhos, pensar novamente nela. Ouço o ruído de folhagem e sei que cada feto afastado, cada caruma pisada, anuncia a sua chegada iminente. Sei que sou mais forte do que ela. Mesmo com uma bala numa perna. Ela está armada, mas mesmo assim poderia tentar subjugá-la. Sinto-a a poucos metros de mim, mas não movo um músculo. Não sei porquê. Limito-me a pensar nela. Cabelo castanho, medo nos olhos, cheiro a sabão, corpo quente.

 

(em Vou para não ficar, Sónia Pereira)

Da inveja

É raro ceder à tentação de ler os comentários dos posts noticiosos dos vários jornais nacionais. A forma impulsiva como as pessoas comentam, a facilidade com que os comentários resvalam para a agressão verbal, fez com que, para bem da minha sanidade mental, deixasse de tentar descortinar a opinião das pessoas sobre determinada notícia ou assunto.

 

Todavia, quando me parece que a notícia não tem grande potencial «incendiário» e que nada poderá correr mal naquela caixa de comentário, dou por mim a bisbilhotar as opiniões alheias.

 

Uma das coisas que percebi, percorrendo uns quantos comentários de diferentes notícias, foi que um dos artifícios mais usados para rebater um comentário ou crítica construtiva era o uso da acusação da inveja. Numa das notícias, em que o novo livro de José Rodrigues dos Santos era apresentado, umas quantas pessoas questionavam de forma serena a qualidade literária do autor, a real capacidade de alguém conseguir escrever um livro de 600 páginas em meio ano, não faltando a estes comentários dezenas de respostas, sendo a grande maioria delas de acusação de inveja — inveja de não vender milhares de livros como o autor, inveja de não ter uma conta recheada à conta dos livros como o autor, inveja de não ser conhecido, uma figura pública como o autor.

 

Numa outra notícia sobre a eleição de Trump nos E.U.A., no meio dos comentários de apoio ao novo presidente surgiam uns quantos que questionavam em que situação estaria aquele país para um ser humano daqueles ter chegado a presidente. As respostas a estes comentários também se focavam maioritariamente na questão da inveja — inveja de não ser milionário como Trump, de não ter uma mulher «boa» como Trump, de não ser dono de um império como Trump.

 

O que me saltou à vista de todas estas acusações de inveja foi os alvos de inveja nomeados incidirem exclusivamente no dinheiro, no estatuto social ou na beleza. Nunca, em nenhum destes comentários, alguém respondeu algo como: «Tens inveja de não ser tão inteligente como ele/ela.»

 

Mais importante do que a capacidade intelectual de alguém para escrever um livro ou para governar um país, aquilo que realmente parece fascinar as pessoas, cativá-las para admirarem alguém, é o dinheiro que essa pessoa possui, o seu estatuto social ou a sua beleza física.

 

A intelectualidade, a inteligência, a capacidade de pensar por si, de usar o raciocínio lógico e criativo não tem potencial de causar inveja. E este facto só me consegue causar estranheza, pois a inteligência é aquilo que mais tendo a invejar nos outros. Perceber a forma brilhante como algumas pessoas expõem as suas ideias, a forma como parecem ser, sem esforço, naturalmente inteligentes e cultas, desperta em mim uma emoção que tento modelar para que seja positiva, para me fazer melhor, mas que nem sempre o é.

Vou para não ficar (excerto III)

Eu não sou eu. Quer dizer, eu sou eu, mas é como se este eu estivesse enfiado dentro de uma caixa terrivelmente apertada e danificada. Uma urna metálica amolgada. Esta caixa oprime, magoa e faz-me perder intermitentemente a consciência. O corpo já não é corpo, é caixa. Um homem na caixa. E só anseio libertar-me desta prisão.

 

Vê-la, ouvi-la, revolta-me. Não me consigo controlar. Sei ainda que a revolta é o caminho para a minha libertação. 

 

Ou… talvez não. Ocorre-me, quando a floresta fica iluminada durante segundos pelos faróis de um carro em movimento, que sempre me senti assim. Revoltado. E nem por isso fui um homem livre durante a minha curta vida. Quando ela, agora sentada aqui ao meu lado, absorta em pensamentos insondáveis, me agrediu, como uma onda gigante que me engolia vinda do nada, pela primeira vez senti o ténue cheiro da liberdade. Mas o corpo, esse, está num cárcere insuportável. Nunca antes senti nada assim. Como se em vez de um, eu fosse dois, como se lentamente me dividisse ao meio. Um que se sente preso e está capaz de fazer de tudo para se libertar e outro que nunca se sentiu tão livre até este momento.  

 
Não sei o que lhe passa pela cabeça. Carrega comigo, sempre calada. Transporta-me. Em mim, existe uma semente que germina. Queria pedir-lhe desculpa. Queria lamentar cada segundo que compartilhámos juntos. Queria pedir perdão por cada gesto, palavra e até pensamento, mas o que me sai da boca são apenas impropérios, mais do mesmo. Talvez eu seja isto, alguém primitivamente mau. E nesta contagem decrescente, não há tempo para reconstruir um novo edifício levantado sobre alicerces deficientes. Mais vale implodi-lo. 


Implode-o!

 

(em Vou para não ficar, Sónia Pereira)
 

O Evangelho segundo Lázaro — Richard Zimler

O evangelho segundo Lázaro.jpg

O Evangelho segundo Lázaro, Richard Zimler, Porto Editora (fotografia retirada do site da Porto Ediora)

 

A propósito do lançamento do livro O Evangelho segundo Lázaro de Richard Zimler, decidi falar sobre o livro, apesar de ainda não o ter ligo. Alguns críticos talvez façam algo do género, lendo obliquamente a obra que pretendem criticar, cedendo à amizade ou proximidade com o autor ou fazendo uma suave concessão aos seus ódios de estimação. No entanto, o que farei não será uma crítica, mas um elogio ao autor do livro em questão. Irei revisitar as minhas leituras da sua obra, fazer uma pequena viagem à década em que me acompanhou com as suas palavras.

 

Há muitos anos (caminho para velha, é verdade), vi na televisão uma entrevista a Richard Zimler. Já tinha ouvido falar nele, mas ainda não tinha lido nenhum dos seus livros. Algo naquela entrevista intimista me impulsionou a procurar a sua obra numa ida futura à livraria. Na altura comprei o que era o romance mais conhecido do autor — O último cabalista de Lisboa. Depois desta leitura, Lisboa não voltou a ser a mesma. Sentia os fantasmas daqueles dias de horror gravados nas pedras dos edifícios, sentia uma atmosfera de medo, perseguição, a pairar no ar que respirava. Após esta experiência literária, comprei todos os livros que o autor tinha publicado em Portugal. Lembro-me de estar na praia a ler Meia-Noite ou o Princípio do mundo e, sentada na areia, sentir uma doce familiaridade com partes do texto e há algo de absolutamente ambíguo, assustador e feliz, quando descobrimos alguém que consegue ver o mundo com os nossos próprios óculos, quando alguém distante nos parece tão próximo e familiar.

 

Recordo ainda um domingo em que passei o dia todo a ler À procura de Sana até ao ponto da minha cabeça doer. Ao ler a última página e fechar o livro, estava mergulhada numa dor que era física, mas transbordava o corpo, submergindo-me numa melancolia que não me deixava abandonar aquele mundo que se encerrava naquelas páginas. Toda eu, matéria e pensamento, estava cativa naquele outro mundo e demorou dias a partir as grilhetas, soltar-me econseguir distanciar-me.

 

Naquela altura (tal como agora), Zimler afigurava-se como um dos autores que mais apreciava. Nunca fui muito de ter coisas preferidas (livro preferido, filme preferido, música preferida, comida preferida), mas ainda assim permitia-me colocar aquele escritor na minha galeria de prediletos, onde figuravam aqueles que não exigiam explicação sensata para a leitura de um seu novo livro.

 

Numa era pré redes sociais onde a distância entre escritores e leitores era sem dúvida maior do que na atualidade, cedi a um arrojamento qualquer e enviei um email a Richard Zimler. Era uma escritora de trazer por casa (ainda o sou) e resolvi pedir-lhe alguns conselhos, sugestões e também manifestar-lhe o meu apreço pela sua obra. Para grande surpresa minha (enviei o email sem realmente contar com uma resposta), Zimler respondeu-me com um texto longo e simpático onde me deu várias sugestões, falou sobre a sua experiência pessoal como escritor e todo o caminho até à publicação. Aquele gesto de consideração para com uma sua leitora contou muito para mim e destacou-o de uns certos comportamentos de altivez e distanciamento exibidos por alguns autores na altura.

 

Tive o privilégio de o conhecer pessoalmente nos seus lançamentos de novos livros e pude disfrutar de um jantar com ele e mais uns quantos seus leitores. Tinha concorrido a um concurso da livraria Bertrand que dava direito aos vencedores de poderem jantar com um escritor de sua eleição. Quando me telefonaram a dizer que tinha sido selecionada, a minha reação de júbilo levou os meus colegas de escritório a pensarem que tinha ganhado um carro, uma viagem ou um prémio avultado em dinheiro.

 

E se a fruição de uma obra não tem de estar intimamente ligada à pessoa que a executou, perceber que Richard Zimler, para além de ótimo escritor, era também uma pessoa especial, um ser humano com qualidades (daquelas que se apreciam nas pessoas que nos são próximas, que queremos ter por perto), só contribuiu para que passasse a ler os seus livros com uma diferente devoção e carinho, para que tentasse ver para além das palavras impressas e conseguisse ver e compreender o homem que as escreveu.

 

Assim sendo, não sinto necessidade de fazer qualquer reflexão sobre a compra do seu novo livro. Está encomendado e é para ler mal chegue às minhas mãos, mesmo desconhecendo as críticas literárias que lhe foram feitas ou as opiniões de outros leitores que já o leram. Quando se tem um autor na nossa galeria de especiais, não há racionalidade que nos valha.

 

Prometo fazer uma verdadeira crítica quando acabar a leitura, embora seja péssima a fazer críticas. Deixo-me sempre levar pelas emoções e fico muito aquém na questão da objetividade e capacidade de síntese da obra. Mas ainda assim, tentarei.

 

Até lá, boas leituras.

Richard Zimler.jpg

(Fotografia de Richard Zimler retirada do site www.wook.pt)

Fica!

Fica!

Não vês como é bela a natureza? Temos as montanhas, os pássaros, os rios e os lobos. Fica.

Lembra-te como são bonitos os pores do sol, as luas cheias, os cheiros da primavera, as árvores de cores incendiárias no outono. Fica.

 

Mas temos também a guerra, a morte estúpida, o sofrimento que causa indiferença, o viver para trabalhar, esta caminhada cega para o vazio.

 

Não digas isso. Fica! Temos pessoas que te amam, pessoas bondosas que precisam do teu amor, do teu carinho. E este mundo não para de evoluir, o que é hoje deixa de o ser amanhã. Temos inteligência palpitante, mentes brilhantes, seres humanos com capacidades extraordinárias. Fica…

 

Ficar? Para quê? Para esta repetição dos dias, esta ladainha sem fim, este sorrir sem nunca chegar a ter vontade de gargalhar, esta incapacidade de ser como deve ser?!

 

Ficas? Temos a comida, temos o vinho. Tu gostas. Fechas os olhos e deixas-te afundar naquele prazer que começa na boca e viaja até cada célula do teu corpo.

 

Pelo vinho? Ficar só pelo vinho?

 

Temos ainda a música e a literatura. Por este dois, pela soma de todas as partes, por este ramo de pequenos momentos que compõem um todo importante, ficas?

 

Só mais um dia. Só mais um dia de cada vez.

 

 

 

 

 

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