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Quimeras e Utopias

Quimeras e Utopias

O silêncio ensurdecedor nas entrelinhas

Refugiava-me por detrás de um semblante azedo e de um mutismo acusatório. Parecia-me impossível que ele não compreende-se o que me atormentava, as aflições e inseguranças que me acossavam. Cheguei a comentar com uma amiga: “Será que é preciso fazer um desenho?” As minhas frases curtas, os meus silêncios, as minhas lágrimas mal escondidas… as entrelinhas que eu esperava que ele conseguisse ler e interpretar passavam-lhe ao lado, como uma brisa. Se inicialmente julguei que ignorava o que, para mim, era uma enxurrada de informação que eu lhe oferecia em desespero, com o passar dos anos percebi que não havia qualquer maldade associada. Os meus silêncios, para ele, eram apenas isso: a falta de som, de palavras; a minha expressão carregada de mágoa, as minhas reações hiperbólicas às pequenas coisas eram a manifestação de um dia menos bom, cansaço, saturação. Coisas da vida. Havia nele uma completa incapacidade de perceber esta linguagem em que me expressava.

Esta guerra nuclear que me abrasa, ele não a vê, desconhece-lhe a devastação associada.

Durante décadas questionei-me se o mal desta incompreensão era exclusividade dele, do meu marido, se era a minha forma de me expressar que era demasiado enrodilhada e complexa ou se era culpa de uma generalizada incapacidade masculina de perceber o colosso que é o hipertexto da comunicação feminina.

Esta semana, deparei-me com umas publicações de um realizador nacional sobre algumas das últimas novidades cinematográficas internacionais. Acabo por ter interesse em saber a opinião dos outros sobre livros e filmes, porque a escrita, seja de prosa ou argumento, é-me importante. Através destas análises literárias ou cinematográficas compreendo que a forma como vejo o mundo é, não raras vezes, idêntica à das outras pessoas. Mas, outras vezes, abre-se um fosso. Um abismo aparentemente intransponível entre eles e eu.

O primeiro filme era o filme francês Anatomia de uma queda e o segundo é o filme Vidas passadas. Gostei bastante dos dois filmes, principalmente do argumento e assim foi com um certa incompreensão que li as críticas que o cineasta fazia às duas obras. E o que o incomodava exatamente nestes dois filmes? O banal, a suposta simplicidade narrativa, a forma que apelidou de televisiva da cinematografia, a narrativa curta que era esticada, sobrando silêncios, porque não havia nada para se dizer. Alguns dos comentários às publicações referiam ainda a frieza da personagem principal do filme francês, a contenção ou falta de emoção (e esta crítica bateu ainda mais forte, porque Sandra Hüller tem um desempenho fenomenal, digno de todos os prémios que apareçam pela frente).

Fiquei a matutar naquelas apreciações, como normalmente fico quando a visão é diferente da minha. Tento compreender o que separa o meu mundo do dos outros, tento compreender a cisão, a fenda que separa aquilo que me move daquilo que mexe com os outros.

Pensava para mim que tanto um texto como o outro estavam muito bem escritos, dois argumentos excecionais, moviam-se no que estava nas entrelinhas, sem serem condescendentes com o espetador e, sim, o que não era dito, o que se sabia estrangulado, era de brutal importância e tudo aquilo que era essencial não acabava na palavra pronunciada. Nenhum dos dois estava enquadrado dentro de uma forma narrativa clássica, dentro dos seus gêneros, mas essa aparente desconstrução ou fragmentação só acrescentava densidade, nunca fragilidade.

“Mas será que é preciso fazer um desenho para que eles entendam?”

Quando percebi o que unia estes dois filmes produzidos em países diferentes, falados em diferentes línguas, um outro filme mais antigo assomou-se-me através das frinchas da memória. Um filme australiano de 2003 chamado Japanese story. Vi o filme há quase duas décadas e lembro-me da inusitada sensação do peso da tensão criada pelas emoções que não eram dissecadas em diálogos explanatórios, da estranha evolução narrativa e da evidência, antes mesmo de ter visto os créditos, de que aquele filme tinha sido realizado e escrito por uma mulher. E foi. Realizado por Sue Brooks e escrito por Alison Tilson.

Também Anatomia de uma queda foi escrito e realizado por uma mulher – Justine Triet, e o mesmo se passa com Vidas Passadas, escrito e realizado por Celine Song.

E sabendo que não havia nenhuma misoginia ou maldade na apreciação do realizador a quem eu cuscava nas redes sociais as críticas cinematográficas, restava a evidência de que, por vezes, é mesmo preciso fazer um desenho. Há uma característica nas escritas no feminino, quando são feitas com autenticidade ou, como lhe chama a escritora Elena Ferrante, verdade literária, que as afasta da escrita no masculino. E esta característica é a capacidade de compactar uma guerra nuclear no silêncio, naquilo que fica por dizer; um turbilhão ameaçador, esmagador num esgar de boca, uma tristeza profunda, uma vida que se esvazia de sentido num rosto que não se vira para trás, um grito altissonante contido numa mão que repousa despreocupadamente sobre uma perna. A devastação travestida de banalidade.

E pegando apenas nas minhas leituras no feminino dos últimos dois meses, Os anos de Annie Ernaux, Canção doce de Leila Slimani, Tudo é possível e Olive Kitteridge de Elisabeth Strout e Vidas de raparigas e Mulheres de Alice Munro, todos estes textos literários sofrem dessa aparente banalidade, de uma contenção que extravasa por todas as frinchas do que está implícito, de uma certa desconstrução genérica e de um desconforto que magoa. São textos que se constroem para além da leitura imediata, para além do ato físico da leitura, porque, embora todo o texto literário seja apenas palavras, quando há engenho de quem escreve, aquilo que fica por dizer, o silêncio nas entrelinhas é mais ensurdecedor do que qualquer frase descritiva de um grito uivado.  

Talvez haja alguma estranheza perante uma escrita que ainda não é mainstream, a escrita no feminino, principalmente quando se fala de cinema, mas creio que com o tempo se chegue a um patamar em que não seja necessário fazer um desenho, em que qualquer um de nós, homens e mulheres, seremos capazes de ler nas entrelinhas, perceber os silêncios, sentir a ressonância das palavras que ficaram estranguladas numa banal frase breve.

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Vidas passadas, de Celine Song, 2023.

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Anatomia de uma queda, de Justine Triet, 2023.

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Uma história japonesa de amor, de Sue Brooks, 2003.

A tentação de N.

Em memória de N.

O tempo voa

O desnorte queda-se, pesado,

a um canto.

Texto escrito a 10/01/2021

Encostada ao balcão, ela foi desfiando algumas das suas preocupações e tristezas, numa conversa que intercalava temas profundos com as banalidades das notícias da atualidade. Saudades dos netos, Covid isto, Covid aquilo.

"Os números são cada dia mais altos", "Por causa do bicho, já há muito tempo que não os vejo", "Os meus netos gostam muito da minha comida.", "Quando será que isto passa?"

Cada palavra foi filtrada pelo acrílico colocado no balcão e pela máscara que usava, objetos que se impuseram no nosso dia-a-dia capazes de transformar qualquer conversa, troca de confidências, em produto enlatado genérico, depurado de emoções.

Ouço.

Ouvi. Talvez parte substancial do meu trabalho seja ouvir. Ouvir ajuda quem é ouvido, ouvir regenera, mas ouvir também fere, cansa pelo peso do que se ouve. Mas naquele dia, o mais certo é eu não ter ouvido, não ter escutado com a clareza necessária, não ter interpretado o que ouvia, não ter sentido o verdadeiro peso das palavras proferidas.

No dia seguinte, ela suicidou-se.

Numa busca mental pela nossa última conversa, percebo, em retrospectiva, que parte do seu discurso apresentava algumas incoerências. Como justificação pela minha falta de atenção e consequente inação, sussurro-me que todos nós, volta e não volta, somos incoerentes, sem que isso seja sinónimo de nada mais do que cansaço ou distração. A minha justificação não ajuda, sinto uma culpa latente, como se tivesse perdido a oportunidade de dizer algo que pudesse ter feito a diferença. Ou talvez tenha mesmo proferido algo que fez a diferença, mas no sentido inverso ao pretendido.

Sobre mim paira a certeza de que não ouvi, de que falhei irremediavelmente. Mas sinto um desconforto agudo com esta culpa. Passei parte substancial da minha vida adulta a equacionar o suicídio. Penso nele de uma forma muito racional, uma saída digna de uma jornada extremamente cansativa e medíocre. Entendo que o direito do ser humano sobre a própria vida é algo de indiscutível e não consigo perceber sequer o horror que esta certeza parece causar nas outras pessoas.

No entanto, num desgraçado paradoxo, choca-me que a N. tenha tomado essa decisão: decidir como e quando terminar a sua própria vida. Justifico o meu choque com uma desculpa: “ah, mas ela tinha problemas de índole psiquiátrica, depressão, etc. Já se sabe que a doença mental é grande causadora da maioria dos suicídios. O teu hipotético suicídio não é dessa ordem. É mais uma coisinha de ordem racional”.

Há em nós, seres humanos, uma qualquer qualidade ou defeito genético que nos leva a elaborações de proteção extrema da vida humana. É certo que embarcamos em guerras, genocídios, todo o tipo de vilanias que levam ao extermínio de muitas vidas, mas a nossa evolução ao longo dos tempos caminha no sentido dessa preservação.

É certo que essa preservação está intimamente ligada à identificação. Queremos preservar aqueles que nos são próximos, que "são como nós". A intrincada rede de laços familiares, a religião, o facto de sermos animais sociais, tudo contribui para considerarmos a vida como algo de intocável e, acima de tudo, precioso. Mas, na veradde, não há nada de precioso na nossa existência. Somos oito mil milhões num planeta no meio de um sistema solar num canto de um universo sem fim. Oito mil milhões que coabitam mal com um número substancial de outras espécies animais e vegetais. Somos um nada. Mas consideramo-nos um todo e essa consideração salva-nos a vida.

Termos consciência de nós próprios, do que nos rodeia, da aleatoriedade da natureza, da nossa insignificância, tudo isso poderia, em teoria, levar-nos ao suicídio massivo, à extinção de uma espécie inteira. Mas as histórias com que nos embalamos, os medos de castigos divinos, os egos inchados da nossa assumida importância, salvam-nos. Pelo menos a alguns de nós.

E que importância teremos de ter para merecer viver? 

Agora continuo a ouvir. Ouço os outros utentes em choque com o que ela fez. Numa localidade pequena tudo se sabe, tudo se adivinha, não há espaço para o mistério. Uma morte é um assunto, uma morte por suicídio leva a extremos de choque e curiosidade mórbida.

Na maioria deles, o espanto está encharcado de incompreensão e até mesmo de uma certa ofensa. "Foi algo que lhe passou pela cabeça, um desvario", "Como é que ela foi capaz de fazer uma coisa daquelas?", "Por causa do que ela fez e ainda para mais nesta altura do ano, a família nunca vai recuperar do trauma", "Uma pessoa no seu estado normal nunca faria uma coisa daquelas", "Isto da Covid não mata as pessoas de uma maneira, mata de outra", "Foi uma tentação do diabo, aquilo".

Ouço-os a todos e não sei o que dizer. Tenho a máscara no rosto e o acrílico sobre o balcão, artefactos que ajudam a mascarar a desorientação que também eu sinto. Profiro umas banalidades em resposta, mas sempre com o peso da possibilidade dessas trivialidades serem a última coisa que terei a oportunidade de dizer àquelas pessoas.

Pudesse a vida ser como no cinema e na televisão e termos a possibilidade de um segundo take para dizer as falas corretas, da maneira certa…  

O que te diria eu, N.?

A vida, em suma, é tramada.

 

Linhas de prevenção do suicídio:

Captura de ecrã 2023-12-20 221912.png

Fonte: SNS 

https://prevenirsuicidio.pt/contactos-e-servicos-disponiveis/

 

O universo gay para a mulher heterossexual: curiosidade, fetiche ou universo escapista essencial?

Corria a década de noventa do século XX e eu, uma adolescente viciada em música e livros e que aspirava estudar cinema, vivia uma invulgar obsessão, uma curiosidade por um mundo particular, que não era o meu.

Desde que tenho memória, o universo homossexual masculino sempre surtiu em mim um estranho efeito apelativo. Olhando numa perspetiva histórica para esse passado, o da minha adolescência, alguns poderão justificar essa pretensa obsessão devido à obscuridade (a nível de representação artística) que os homens gays e as suas histórias tinham na época, ainda para mais num país como Portugal. Não era de todo fácil encontrar livros ou filmes em que uma personagem homossexual fosse representada e assim o pouco que encontrava, apreciava-o como se de um tesouro se tratasse.

Mas de onde vinha esta minha tara? E era uma tara, obsessão, uma curiosidade, era exatamente o quê? Durante estes vários anos nunca pensei muito em me justificar e bastava sentir-me bem a navegar naquele universo que não era o meu e no qual não estava representada, para continuar na minha senda por esses representações literárias e cinematográficas ─ a busca por uma total e completa representação daqueles que estavam num espetro afetivo tão distante do meu.

Foram precisas três décadas para finalmente me questionar e o questionamento vem porque a obsessão persiste. E se a pergunta agora se impõe é porque percebo, com alguma surpresa, que não estou sozinha. Se na adolescência eu era a rainha das cenas gays, agora eu sou um pequeno peão num gigantesco mercado. Se antes eu era a esquisita que vasculhava livros obscuros na biblioteca ou numa livraria, agora não preciso sequer de pedir, vasculhar, procurar. Há-os à farta, em vários registos, em vários formatos artísticos e de entretenimento.

E esta constatação não vem em tom de crítica. Olho em volto e falando com algumas adolescentes de agora (haverá frase com maior força para me atirar para os confins da meia idade do que esta?), percebo que também elas partilham em muito desta adoração por este universo LGBTQIA+. E o mercado obedece. Chegados à década de vinte do século XXI, vemos o entretenimento e a arte supostamente atentos e preocupados com as minorias, principalmente as minorias no que à orientação sexual e identidade de gênero diz respeito. Mas será que estão? Preocupados?

Percorrendo alguns canais de Youtube sobre este tema, é recorrente o surgimento de uma opinião interessante: todo o conteúdo LGBTQIA+ não é propriamente direcionado a um público LGBTQIA+ (e nunca o seria em exclusivo). Os conteúdos são direcionados para a fatia de público que mais os demanda, que os procura e que, sendo uma fatia gigante, é a fatia a se agradar: adolescentes e mulheres heterossexuais. E nesta obediência do mercado ao público que lhe rende, há em mim um rol de emoções algo ambivalentes. Por um lado, pergunto-me se os nossos gostos não estarão a ferir (de alguma forma) uma minoria até agora silenciada e marginalizada, por outro lado, não sinto culpa pela submissão dos mercados, por uma razão muito simples: enquanto mulher, vi durante toda a minha vida os “produtos” artísticos serem produzidos, pensados, desenhados, tendo em conta quase exclusivamente um público masculino. Mesmo aquilo que supostamente era direcionado a nós, mulheres, que nos tinha como público preferencial, era moldado sob uma tutoria masculina. E nós acabamos a olhar o mundo de uma forma muito deformada por esses óculos que não eram os nossos. Agora, ouvindo o tinir dos sinos do lucro, eles decidiram ouvir-nos a nós. Se há algo de retorcido nesta constatação, há-o certamente e não sei bem o que sentir relativamente a isso.

Na atualidade, no segmento editorial Young Adult, as novidades de livros queer são diárias, embora também as haja entre o segmento de literatura convencional, no streaming, entre filmes e séries para um público mais adolescente ou mais adulto, as ofertas também são variadas. É difícil passar mais de uma semana sem uma novidade numa das plataformas ou no cinema. E temos séries como Heartstopper (Netflix) transformada num sucesso, com milhares de fãs em todo mundo ou o filme da Amazon Prime Red, White and Royal Blue a aparecer como um dos filmes mais visionados da plataforma em questão.

E não havendo nenhum mal nisso, em se direcionar um conteúdo para um público que o quer, surge, no entanto, algumas preocupações, vindas principalmente do público LGBTQIA+:

        Estarão, nesta agora mais comum representação queer, as personagens masculinas representadas de uma forma mais heteronormativa para agradar o público feminino heterossexual?

        Haverá uma espécie de adaptação heterossexual (a vários níveis: sexual, social, cultural) de um universo que não o é, para agradar a um público específico?

        Havendo uma abundância de representação homossexual masculina, porque é que é tão difícil ainda agora encontrar uma maior representação sáfica? Será porque o público feminino heterossexual não se interessa?

        Haverá uma espécie de fetiche feminino por estas representações homossexuais masculinas?

Olhando agora para a minha pilha de livros, dos últimos que li este ano, passando os olhos pelos belíssimos Nadar no Escuro de Tomasz Jedrowski e Young Mungo de Douglas Stuart, recordando as imagens do filme God’s Own Country, um dos poucos filmes em que espetei com cinco estrelas no Letterbox ou ainda o ridículo, adolescente e adorável (filme e livro) Red, White and Royal Blue, vem a pergunta milionária: porque é que gosto disto, porque é que um universo afetivo, sexual, cultural, social, que para mim aparece como um universo fantástico (pois não lhe pertenço), se apresenta como o universo onde quero estar?

Pesquisando aqui e ali, analisando-me e aos que me rodeiam e que partilham do mesmo gosto, talvez seja possível chegar a um punhado de respostas, embora ache que uma tese na área da psicologia pudesse ser interessante, porque tudo o que disser será de índole muito superficial:

         ─ Aquilo que causa estranheza aos outros nesta identificação peculiar é na realidade a chave da explicação: identifico-me com a história de um homem gay, com a história romântica ou de superação de um homem gay porque não estou lá representada. E pensando num universo afetivo onde não se está representado, concluiu-se que não é possível estabelecer comparações.

Como adolescente, sempre fui muito insegura a vários níveis. Achava que não era suficiente em nada: no aspeto físico, na beleza, na inteligência, na capacidade de superação. Medíocre ou mediana como um todo. Suponho que esta sensação avassaladora de se estar aquém tenha moldado em muito a minha forma de ver e aceitar o mundo à minha volta. E talvez o mesmo se passe com as adolescentes de hoje em dia. E a única forma de se experienciar um mundo onde existe amor, beleza, superação e revolução, é procurando um universo onde não se esteja, onde não seja possível estabelecer nenhum tipo de confronto comparativo: ela é melhor do que eu, mais bonita, mais elegante, mais inteligente, mais capaz, mais independente, mais otimista, mais simpática, mais astuta, mais destemida.

Onde não havia elas, só eles, eu podia estar, porque não havia nenhum espelho onde pudesse ser confrontada pelo meu pobre reflexo.

         ─ Outro dos fatores de interesse é o que classifico de desconstrução de estereótipos de gênero. As figuras masculinas que tinha como referência há trinta anos eram figuras que facilmente cairiam numa comum caracterização do sexo masculino: homens que irradiavam uma masculinidade tóxica, muito machos, mesmo entre os adolescentes borbulhentos da escola, com grande dificuldade em demonstrar afeto e que criticavam fortemente quem (de entre eles) o fizesse. O gesto era comedido, a não ser que se estivesse no campo da abordagem sexual, onde aí era dominante, mais agressivo. Tudo o que era da ordem das emoções era maricas, efeminado, coisas de gaja.

No entanto, num universo onde não havia mulheres para se dominar, submeter, mostrar superioridade, esses estereótipos de género eram subvertidos, quebrados. Pegava em Maurice de E. M. Foster e encontrava Maurice dominado por uma afeição, um amor por Clive, que não lhe permitia uma expressão física desse afeto, e encontrava um tipo de homem que não existia na minha realidade. Um homem que não tinha medo das suas emoções, que mesmo se sentido ameaçado pelos seus sentimentos impossíveis, decidia ir contra a corrente, ser aquilo que o invadia: desejo, afeto, carinho, amor.

Esta quebra, subversão de uma construção de gênero acabou por ser, para mim, enquanto adolescente, uma das principais motivações para a procura daquele tipo específico de objeto artístico. O que ali se encontrava era uma suavização do que era áspero, bruto, empedrado. Para mim, se pensasse em igualdade de gênero, era nisso que pensava: alguém capaz de sentir e demonstrar o que sentia para além da convenção, alguém capaz de chorar como eu.

         ─ Por último, o que aquele universo trazia e era de difícil replicação num qualquer outro universo era a batalha e superação daquilo que era proibido, criticado, mesmo que o protagonista estivesse sujeito a injúrias por ser aquilo que era.

Grande parte da literatura gay e lésbica da minha adolescência estava focada precisamente no conceito base do crime/proibição/pecado/censura e crítica social. Aquelas pessoas ali retratadas eram, só por sentirem paixão/desejo/amor por alguém do mesmo sexo, a face do crime e um gesto de afeto era uma transgressão. Assim, aquelas demonstrações afetivas ali retratadas tinham uma valoração diferente de qualquer outra que pudesse ser demonstrada por um homem heterossexual por uma qualquer mulher. Não havia no meu universo heterossexual qualquer possível paralelo com aquilo, pois nem eu nem nenhum homem heterossexual teria de superar tais obstáculos, ver as suas demonstrações de afeto serem consideradas nojentas ou criminosas, alvo de escrutínio público, sujeitas a sanções. O peso do meu afeto heterossexual nunca poderia ser tamanho, tão extremo, tão evidente. Tão imenso. Havia assim um elemento épico que não encontrava em mais lado nenhum, a não ser naquele universo.

Em suma, a possível identificação, mas sem elementos de comparação, a subversão de certos estereótipos de gênero, a suavização da masculinidade e o elemento épico, sem paralelo na minha vida, serão, os elementos que mais facilmente encontro como justificação de uma preferência literária/artística e de entretenimento. Talvez se tivesse sido uma adolescente carregada de auto estima, as minhas leituras tivessem sido outras. É bem possível. Ou talvez não.

Depois deste pequeno exorcismo, desta psicanálise do meu eu adolescente, deixo apenas uma referência à questão do fetichismo. Não me parece que esta acusação de fetichização tenha fundamento, no sentido em que, tanto no entretenimento como na arte no geral procuramos pontos de fuga, mas também pequenos lugares de identificação. O que nos leva à escolha de um livro, de um filme para ver ou até mesmo de uma exposição de arte, são os lugares de identificação, mesmo que esta aconteça através do desconforto, da desorientação. Há sempre um Eu a procurar um buraco de fechadura para espreitar.

O nosso Eu é dominante, mesmo quando pretendemos subjugá-lo e esvaziarmo-nos dele. O que quer dizer que, de certa forma, ou chamamos outra coisa a essa procura do nosso Eu naquilo que nos rodeia ou então teremos de classificar toda e qualquer relação com a arte e o entretenimento como fetichista.

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God's Own Country, de Francis Lee (2017).

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Young Mungo, de Douglas Stuart (2022)

Excisão da empatia

Costumo dizer que não tenho livros preferidos, filmes preferidos, coisas preferidas no geral. No entanto, no que toca aos livros, embora nunca o nomeie como o meu livro preferido, o certo é que As Benevolentes de Jonathan Littell está-me sempre a aparecer à porta da memória, apesar de o ter lido uma única vez há 17 anos. Ainda não há muito tempo escrevi sobre ele para uma disciplina, onde o mote do texto era «O corpo que lê» e escolhi esta obra para falar sobre os efeitos físicos da sua leitura, pois, mesmo passados tantos anos, a perturbação persiste latente no meu corpo que envelhece.

Hoje, ao percorrer as notícias digitais de alguns meios de comunicação, lá apareceu ele novamente, a berrar-me dos fundilhos da memória. E o que diabo terá um livro escrito em francês por um americano há uma catrefada de anos a ver com as notícias do dia?

Precisamente… tudo.

Quando há quase duas décadas alguém me perguntava de que tratava aquela “bíblia” enorme que andava a ler e que eu transportava para todo o lado, a frase mais curta que encontrava e que parecia resumir tudo era que aquele livro era um manual de como transformar um ser humano num monstro.

Com a ação a passar-se durante a II guerra mundial, a história narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um oficial das SS, vai-nos mostrando como os acontecimentos extremos de um conflito conseguem transformar um ser aparentemente banal, num ser sem escrúpulos, capaz de tudo.

No meu agora, sei que a minha sinopse da obra era infeliz. Não há monstros neste mundo. Quando, do alto da nossa facilidade, julgamos o outro que age de forma extrema, com a qual não nos conseguimos identificar, rotulamo-lo de monstro. Mas na realidade, aquelas pessoas, a matar, torturar, violar, são pessoas como eu. Ou quase.

E o quase reside na força devoradora dos conflitos. Os conflitos perpetuados, arrastados, a exposição prolongada de qualquer ser humano à violência, à subjugação e à indignidade leva a uma excisão da empatia que ainda se aloje dentro dessa pessoa. As guerras são como máquinas de amputar empatia, de criar bunkers de isolamento emocional.

No livro de Littell, o protagonista Maximillien Aue desfila da inocência de ser um jovem adulto, alegre, que se choca com a violência inusitada dos outros, que se enoja com os extremos a que alguns soldados se erguem, até chegar, também ele, ao topo do miradouro da vilania, da psicopatia. E ali, ao longo de quase 900 páginas, está o raio da explicação de tudo o que se passa e sempre se passou nas nossas sociedades modernas.

E quando fechei o livro, de mãos trémulas e mente agitada, a pergunta que se empunha era e continuará sempre a ser – estando eu ou qualquer uma das pessoas que conheço, expostos a tais níveis de violência, amputados pela raiz de qualquer empatia, identificação com o próximo, serei, também eu, capaz de chegar àqueles extremos? Matar, raptar, torturar, violar? Será a violência como uma doença contagiosa, um cancro que se metastiza por todos os elementos de um grupo social, apodrecendo tudo por onde passa?

E, claro, abandonando o espaço da ficção e lendo ou vendo as notícias, há sempre a tentação de defender um dos lados envolvidos num qualquer conflito. Normalmente a escolha é facilitada por questões muito simplistas. A identificação está sempre no topo da lista das nossas justificações clubísticas. Defendemos aqueles com quem nos identificamos mais, seja por razões de proximidade geográfica ou razões sociais e culturais (um dos lados do conflito tem um estilo de vida semelhante ao nosso, as suas atividades diárias são mais facilmente comparáveis com as nossas). E mesmo que nenhum dos grupos envolvidos no conflito leve a cabo ações defensáveis, a verdade é que acabamos por cair na armadilha de menorizar as ações dos nossos semelhantes e antagonizar e repreender severamente as ações do grupo oposto, mesmo que essas ações sejam uma réplica perfeita, um reflexo no espelho, das ações do seu oponente.

Nós, os espetadores, vemos o mundo de uma forma maniqueísta. Os bons e os maus, quando a dura verdade é que será muito difícil encontrar os bons onde já não há empatia e não podemos catalogar de forma simplista os outros de maus, porque talvez a maldade seja característica humana, um atributo como qualquer outro, uma espécie de gesto reflexo dos emocionalmente amputados.

Em suma, em mim há apenas desespero ao ver o que se passa à minha volta, porque neste filme não há super-heróis. Há apenas conflitos congeminados e alavancados por meia dúzia de pessoas, de parte a parte, que não sofrem diretamente o peso esmagador desses mesmos conflitos. A gula de poder, o narcisismo dos escolhidos a corroer cérebros e a criar zombies.

Mas há, também e acima de tudo, dúvidas.

Há mais de um ano, vi uma peça de teatro de Tiago Rodrigues, «Catarina e a beleza de matar fascistas». Tal como o livro de Littell, não a catalogarei como a minha peça de teatro favorita, mas ela volta, assalta-me a memória quase todos os meses. Escrevi sobre a peça na altura que a vi e, como num jogo de espelhos da realidade, também ela tem muito a ver com a atualidade. A de hoje e a das últimas décadas, porque a realidade é uma reciclagem histórica contínua. A porra da realidade não daria ficção, porque a repetição torna-a inverosímil e previsível.

Tiago Rodrigues, num texto com uma escrita brilhante, deixa o espetador a matutar nas questões da vida: até onde se pode ir para parar o mal, deter aqueles que pretendem restringir a liberdade de uma sociedade? Será legítimo, ético, usar violência para travar aqueles que, de alguma forma, também são violentos? Quais são os limites de ação de alguém que se defende de um ataque? E não haverá culpa pela propagação do mal, pela profusão da retórica fascista, da subjugação de um povo, da indignidade, da violência, se todo o ser humano se mantiver dentro do legal/ético/moral? Não será a inação uma forma de repressão e coadjuvação com o opressor?

E é neste difícil jogo de xadrez, entre empatia ou falta dela, territórios consagrados e territórios expurgados, liberdade e opressão, manipulação e subjugação, que se joga a vida humana e a paz no mundo.

E no fundo, o que será realmente isso da Paz no mundo?

Harmonia entre partes ou silêncio de uma das partes subjugadas?

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Catarina ou a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues

 

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As Benevolentes de Jonathan Littell, Dom Quixote, 2007. 

Teoria geral da relevância humana

«Quem são estas pessoas? Serão pessoas ou serão monstros?»

Navegando pela internet, pelas redes sociais, caindo em queda livre nos comentários de uma qualquer postagem, não será difícil a frase sair-me da boca. Uma pergunta para a qual sei a resposta, mas que ainda assim se escapa pela estupefação, embora os comportamentos, as palavras cruéis nada tenham de novo.

Ontem via no Instagram um desabafo de uma tradutora/promotora literária, que sigo nas redes. A pessoa em questão foi ao lançamento do livro «No meu Bairro», de Lúcia Vicente/Tiago M. e foi “apanhada” no turbilhão de ódio de uns quantos grunhos que por lá apareceram a manifestar-se.

Ora, desta frase anterior, corrijo a palavra “grunhos”, porque embora a tendência seja classificar o comportamento inadequado de alguém de uma forma mais reles, com adjetivos depreciativos, essa classificação como que isenta o outro de responsabilidade dos seus atos. Nunca se trata de monstros a fazer coisas monstruosas, tratam-se de seres humanos como eu a fazer coisas humanas, embora ações que são nutridas pelo ódio e pela falta de empatia. Corrijo ainda a palavra “manifestar-se”, porque toda a gente sabe que aqueles homens que invadiram um lançamento de um livro com um megafone não se estavam a manifestar, não reivindicavam nada. A natureza daqueles atos era outra.

Bem, o post da H., a tradutora/divulgadora literária, mostrava uns quantos screenshots de comentários sobre ela, debaixo de uma fotografia que lhe foi tirada por um dos manifestantes durante esse lançamento literário, onde o seu aspeto físico, a sua cor da pele eram usados como forma de enxovalhamento na forma mais cruel que se possa imaginar. Quando não há argumentos, há insultos e ali havia de tudo: racismo, xenofobia, misoginia, masculinidade tóxica (que de tão tóxica que era, envenenava qualquer resquício de empatia que aquelas pessoas poderiam ter dentro de si). Por momentos, aquilo que supostamente tinha movido aquelas pessoas a se manifestarem desaparecia. Sobravam apenas as palavras cruas e duras: gorda, mestiça, brasileira, fenótipo assim, fenótipo assado.

E ao ler aquilo, ao pensar como H. se deveria estar a sentir ao ler aquelas palavras, ao me sair da boca a frase «Que pessoas são estas que dizem estas coisas de uma forma tão cruel e com tanta ligeireza?», caiu-me no colo a contagem das vezes que tinha pronunciado a mesma frase num mero par de dias: comentários maldosos num grupo de partilha de leitura de livros, onde o que me pareceu um problema técnico da página foi classificado por algumas pessoas nos comentário como má vontade da administradora do grupo, logo ali prontamente classificada de desocupada, desempregada, divorciada, mal resolvida (com a carga sexual que tem sempre de ser trazida ao barulho e com todas as piadas foleiras associadas). Umas horas antes, falava com uns amigos americanos que descreviam como tinham sido enxovalhados por um fulano anti-vacinas quando, num grupo de expatriados, tinham apenas divulgado o calendário de vacinação da Covid 19 para maiores de 60 anos. Insultos e ameaças que os deixou perplexos pela desproporção da resposta a uma mera divulgação do SNS. Comentários à notícia do julgamento de Mamadou Ba, comentários à notícia de abertura de uma livraria feminista em Lisboa. Pequenos exemplos, numa longa lista, onde eram fáceis de perceber os tópicos que mais alarves chamava para os comentários. Palavras escritas para fazer doer, palavras como pedras, palavras que pretendiam humilhar pela brutalidade.

E ao ler centenas de frases pronunciadas no mundo virtual, escoltadas pela segurança de não terem sido ditas «cara a cara», mas sob a proteção da distância, de dedos que dedilham teclas num aparelho, ainda assim vem a pergunta: «Quem são estas pessoas? E porque é que dizem estas coisas?» 

E a resposta não é bonita, porque é óbvia. Não há qualquer grandeza na descoberta da Verdade, não há um Nós vs Os outros, Humanos vs Monstros. Aquelas pessoas que ali falam apenas procuram uma coisa, que quase todas as pessoas no mundo procuram também. Mas ao invés da procura ser interior ou junto daqueles que os rodeiam, há como que um estrebuchamento perante aquilo que não conseguem entender, perante aquilo que é acessível, mas quase nenhum ser humano consegue apreender:

 A nossa relevância no mundo não tem de ser espalhafatosa, não tem de ser notada pelos outros milhões de habitantes do planeta. O motor da nossa existência, aquilo que nos faz levantar de manhã e ter coragem de sair da cama, aquilo que leva milhares de pessoas a correrem riscos, a não desistirem, a procurarem segurança, alimento, amor, não tem de ser um evento global aplaudido e notado a uma escala nacional/internacional. E não se entender isto  a insignificância de todos nós , que apenas ganhamos importância junto daqueles que nos amam, através dos nossas ações, que, com sorte, nos podem fazer perdurar na memória daqueles que ainda hão de vir, não entender esta dado básico da engrenagem do mundo só nos traz solidão.

Aquela pessoa que destila ódio nos comentários está só. Aquela pessoa sabe que aquelas suas palavras amargas gerarão respostas e sabe ainda que se lá escrever um comentário «do bem», cheio de otimismo, positividade, alegria, a interação que irá granjear será nula. O ódio revolta, espicaça, gera contacto. O Bem, aquilo que se espera do bom ser humano, é como um dado adquirido, não é notado, questionado, aplaudido ou motivado. E, de uma forma retorcida, aquelas pessoas são vistas, são notadas, ficam momentaneamente menos sós. E no meio de muitas respostas amargas àquele que inicialmente insulta, vêm também aqueles que, como ele, procuram o seu lugar no mundo, ser relevantes, justificar a sua existência.

Os que odeiam conhecem-se, formam um grupo de ódio, odeiam juntos. E a solidão parece menor, encolhe um pouco e odiar será combustível existencial como outro qualquer.

Quando leio comentários assim, imagino de imediato aquela pessoa que destilou ódio, a que está do outro lado, numa ânsia a olhar para o telemóvel, aguardando o apito sonoro que o alerte da chegada de uma reação às suas palavras. E, estranhamente, sinto pena.

Com as redes sociais, é fácil sermos apanhados pela aparente grandeza da vida dos outros. O que fazem, onde vão, quem os rodeia, como são bonitos, o que conquistam, como são aplaudidos. Acontece-me a mim. Ao seguir aqueles que me são referência nas áreas que me são mais queridas, não há como não sentir o toque da insignificância, não há como a minha vida não ser vista sob o projetor da mediocridade. Mas ainda assim, há que respirar fundo e perceber que aquilo que me poderia fazer sentir relevante não virá através da diminuição dos outros, dos feitos dos outros, das palavras e ações dos outros. E talvez a relevância esteja aqui mesmo ao lado, no amor que poderei dar e receber daqueles que me são próximos, em existir com dignidade, criar memórias bonitas no meu filho, porque não é preciso um auditório cheio a aplaudir para a minha vida ou a de qualquer outra pessoa fazer sentido.

No fundo, ainda não sabemos lidar com aquilo que a evolução das espécies nos trouxe, enquanto espécie humana. Esta consciência de nós próprios, esta auto perceção da nossa pequenez, de sermos um entre milhões, num pequeno planeta num universo sem fim à vista, a aleatoriedade da vida, todas estas coisas fez-nos criar deuses, levou-nos à arte, transformou-nos em seres sociais, parte integrante de uma rede de ligações familiares e de amizade, fez-nos buscar a beleza, procurar o desconhecido, mas nenhuma destas coisas conseguiu ainda eliminar por completo a necessidade das perguntas:

«Qual o sentido da minha vida?»

«O que faço aqui?»

«Qual a minha relevância?

»Porquê continuar?»

E, sem qualquer espanto, compreendo que aqueles que odeiam, também eles, procurem todos os dias, incansavelmente, resposta para estas mesmas perguntas.

Isso… e colmatar a solidão.

Red, White and Royal Blue

Ultimamente, tendo a começar os meus textos ou conversas com a afirmação: «Eu tenho 45 anos» como se isso, por si só, respondesse a todas as perguntas ou explicasse todo o disparate ou estranheza que fossem pronunciados por mim dali para a frente.

Neste caso, em que me preparo para escrever sobre uma comédia romântica, o «eu tenho 45 anos» explica tudo e mais alguma coisa. Ter 45 anos explica o número de estrelas que darei a um filme, explica que posso ter, sem vergonha, chorado a vê-lo, explica que já nem sinta vergonha de o admitir.

Quando era adolescente e no início da minha idade adulta entreguei-me aos prazeres das crises existenciais, do sofrimento e da expiação e embora o amor estivesse lá como uma possibilidade, o fatalismo era a minha religião. Entreguei-me aos mestres da literatura, procurava as obscuridades cinematográficas, as músicas depressivas com laivos suicidas. Em mim não havia lugar para o amor meloso, isto porque eu acreditava que ele existia, mas que não era para mim ou era imperativo rejeitá-lo.

Acho que na minha juventude nunca terei visto uma comédia romântica: escolher um filme desse género, convidar os amigos e ir ao cinema vê-lo. E embora tenha assistido a muito cinema dito comercial, a comédia romântica era o que de mais baixo se poderia ir ver a uma sala de cinema. Era preferível assumir perante os amigos a autoria de um qualquer crime de sangue a admitir-se que se tinha gastado dinheiro com uma mediocridade cinematográfica como uma comédia romântica.

Agora, chegada a meio da década de quarenta, aqui estou eu a ver e rever uma comédia romântica que pode ser classificada com todos os objetivos pejorativos que eu tinha antes guardados para este tipo de cinema.

Red, White and Royal Blue é uma comédia romântica da Amazon Prime, baseada no livro homónimo de Casey McQuiston. Já tinha ouvido falar do livro, mas não o li. Na altura em que saiu, fiquei com a impressão de ser um tipo de leitura muito orientada para um público jovem adulto.

E embora não haja motivo para vergonhas em admitir que já casei Dostoiévski com Jo Nesbo ou Yrsa Sigurdardóttir com Toni Morrison, a pilha de livros comprados e ainda não lidos era (e é) gigante e não caí na tentação de comprar o livro em questão.

Mas quando o filme saiu e depois de alguns dos meus amigos, que sabem exatamente o que quero dizer com o «eu tenho 45 anos», mo terem aconselhado, lá fui vê-lo.

E realmente é:

Adolescente, foleiro, meloso, irrealista, piroso, lamechas, manipulador de emoções, fofinho e previsível.

E eu adorei.

Eu sei que o mundo não é assim, eu sei que os obstáculos derrubam as pessoas, eu sei que o diabo do amor é coisa tão complicada, complexa, que já nem sinto vontade de falar dele, eu sei que o que há de mau para acontecer normalmente acontece, eu sei que a mediania e a mediocridade imperam, eu sei que não há espaço nem vontade para os grandes gestos, para as grandes ações, eu sei que aquele frenesim adolescente, aquela sensação de se ter uma vida inteira pela frente, pronta para ser heroicamente desbravada, eu sei que essa impetuosidade, impulsividade está moribunda, como morta, emitindo os seus últimos estertores. Eu sei, como diz o outro, que vou falhar e… falho. Tenho plena consciência de tudo isso.

Já tenho idade para conhecer todas as engrenagens disto de se viver e, como tal, nunca como agora fez sentido rir de coisas básicas, parvinhas, algo pirosas, nunca fez sentido como agora verter lágrimas pela fortuna de alguém amar alguém, mesmo que esse amor tenha sido desenhado propositadamente para pessoas como eu, nunca antes fez sentido vibrar com uma cena íntima entre dois homens e captar em tudo aquilo, em dedos que se tocam, em palavras bravas que se pronunciam sem medo, uma centelha do que foi ser-se jovem e de se sentir o mundo entre os dedos.

Red, White and Royal Blue não é Bergman, não é Manoel de Oliveira, não é nenhum Tarantino (embora por lá ande a Uma Thurman), mas é ridiculamente querido, pateticamente meloso, dolorosamente adolescente, entre o riso e o choro, exatamente por onde cada adolescente (e adolescente wannabe) deve navegar.

Para um adulto que decida ver o filme, o mais certo é todo o início dar uma certa vontade de se querer odiar aquilo. É uma comédia adolescente que ali se começa a desenrolar, com laivos (a todos os níveis) de Disney Channel, uma estrutura narrativa óbvia de inimigos que viram amigos que viram amantes. Mas é absolutamente impossível manter essa vontade de odiar após uma dezena de minutos, porque, mesmo que não se queira, mesmo que seja absurdo admitir-se, nós precisamos daquilo.   

Para além desta observação mais pessoal, deixo ainda aqui uma outra nota. Estamos a falar de uma comédia romântica queer, em que as personagens principais são dois homens e, acho que se todo o mundo heterossexual teve direito a boas doses de pirosice, porque não dar também essa oportunidade, essa representatividade do amor meloso, piroso, fofo e algo foleiro à comunidade LGBTIQA+? Não haverá maior normalização da diversidade do que quando esta chega a coisas tão básicas como as comédias românticas.

Para além da parte romântica, refiro ainda outra nota. Falando de política e dos vários sistemas políticos (seja a monarquia no Reino Unido e um sistema democrático republicano federalista nos E.U.A.), o filme acaba por trazer à fala questões como a representação política de comunidades menos visíveis e da importância desse representatividade (a comunidade hispânica nos Estados Unidos) e também a questão da relevância ou utilidade da monarquia no século XXI.

Assim, este filme é todos os adjetivos que reservamos para as comédias românticas, mas não há qualquer mal nisso. O cinema, tal como outras expressões artísticas, guarda em si a possibilidade do entretenimento, do ligeiro, do imediato, do infantil e da submissão ao objeto artístico.

Amanhã, o mundo trará sangue, suor e lágrimas, queda, desconforto e solidão, misoginia normalizada e homofobia enraizada. Por hoje, fico-me por uma história romântica que acaba bem.

Red, white and royal Blue

Realizador: Matthew Lopez

Atores principais: Nicholas Galitzine, Taylor Perez, Uma Thurman, Sarah Shahi, Rachel Hilson e Stephen Fry.

Amazon Prime

Este meu corpo torto

O corpo como elemento dissociado do Eu, como um desdobramento material do Eu, mas um desdobramento caótico, aleatório – um reflexo distorcido da verdade.

Pensei no corpo nestes trâmites durante muito tempo. O meu corpo estava francamente aquém do que eu achava que ele deveria ser, o meu corpo não era uma materialidade em condições da minha personalidade.

Claro está que toda esta minha crença era uma perfeita parvoíce, porque percebo agora, passados os anos, que sou um produto em constante construção pela vivência social, pela navegação deste meu corpo entre este mar de outros corpos. O meu Eu fundou-se na vivência social de um esqueleto coberto de músculos, veias e carne.

Eu sou aquilo que o meu corpo é.

Eu sou da forma como me veem.

 As minhas inseguranças, a escolha das minhas lutas, as mais ínfimas decisões do dia a dia – olhar alguém nos olhos, decidir iniciar uma conversa, ter coragem para me levantar depois de uma queda aparatosa – todas estas banalidades provêm da vivência social deste meu corpo durante estas primeiras quatro décadas.

E se depois de uma adolescência de profunda aversão por mim própria, aversão pelos cantos, becos e linhas oblíquas desnecessárias deste corpo, consegui chegar ao patamar da escadaria da tolerância…

Enfatizo que tolerar não é aceitar.

Percebo que o meu entendimento do que será um corpo perfeito está enraizado em preconceitos, traços culturais, publicidade e marketing, parâmetros quer inconcebíveis como impraticáveis – um corpo perfeito deveria ser somente um corpo funcional e saudável –, mas apesar dessa perceção, não há aceitação possível do que me calhou na rifa. E todas as campanhas de body positivity me soam a falsidade, a um prémio de consolação para o atleta que ficou em último lugar na corrida.

Perceber que se fundou um edifício em alicerces defeituosos não faz nem o edifício nem os alicerces desaparecerem. Eu sou fruto da maneira de se pensar desta sociedade, para o bem e para o mal e quanto a isso não há nada a fazer. Posso ter consciência dos bastidores, mas a peça continuará a ser a mesma a que toda a gente assistirá.

E, quando o meu corpo entra em rota de colisão com a minha vontade, quando se alarga excessivamente, quando descai, quando me esfrega na cara os sinais óbvios de envelhecimento, de entortamento, quando me grita que não mando nele, que quer ser livre, decorado de adiposidade, de cabelos brancos, olhos vesgos, dentes tortos, pele borbulhenta, enraiveço-me e castigo-o, mostro-lhe a sua insiginificância.

E se com o tempo consigo encontrar nos outros beleza naquilo que não é óbvio, naquilo que foge ao padrão, encontrar beleza no que antes me parecia abjeto, não me permito tais lisonjas comigo própria, porque edifiquei-me na impossibilidade de alcançar o belo.

Eu sou a falha, a fenda, o Frankenstein da materialização física, o Mr. Hyde do Dr. Jekyll e não há perdão possível, nem campanha de sensibilização positiva que me faça olhá-lo de diferente forma.

Este meu corpo torto sou Eu. Este meu corpo oblíquo não é um duplo caótico e desprezível do meu verdadeiro Eu.

O meu Eu gerou-se no mesmo ventre, gêmeo univitelino deste corpo torcido.

Escrever é só palavras

Passaram quase três horas. Escrevi meia dúzia de linhas. Rabisquei as duas cenas seguintes num caderno, para justificar tanto tempo perdido, mas não consigo abrir o diabo daquela porta, fazer a personagem entrar naquele quarto, confrontar-se com as perdas, com a memória do que foi e que não poderá voltar a ser.

Não consigo rodar a maçaneta e escrever as duas cenas finais.

Por esta altura, parece impossível fazê-la perceber que não vale a pena tanta resistência. Nada disto é real, nada disto é materializável fora da minha cabeça, nada disto existe para além dela, a personagem, e de mim, a sua criadora.

Sinto-me alvoroçada, como se aquilo que estivesse ali para acontecer, aquilo que eu estou prestes a fazer suceder, não fosse apenas um amontoado de palavras que se organizam numa estrutura pensada, num documento guardado no meu computador. A minha pulsação está alterada, a minha respiração - inspirações e expirações breves, atabalhoadas - comporta-se como se antecipasse um grande acontecimento, a chegada de uma notícia decisiva. Um beijo de uma boca que se aproxima, a notícia de uma morte inesperada, o anúncio de uma saída digna disto tudo.

Mas sou só eu a viver mais um dia da minha vida. Banal, trivial e previsível. Eu sentada numa cadeira, no escritório, frente ao computador. E aquilo que faço aparecer sem qualquer magia na tela do computador são apenas palavras. Só palavras.

Palavras que fazem andar, abrir portas, chorar baixinho, quase sem som. Palavras que percebem as camadas complicadas de um olhar medroso, palavras que confrontam com o silêncio, a ausência, palavras como facas, que retalham, esventram, fazem sangrar, palavras como caricias num rosto que não as esperava. Palavras que sobressaltam com um punhado de letras. Palavras num orgasmo que faz estremecer, descontrolar, perder o pé por segundos, para logo flutuar em águas tépidas e calmas.

Palavras que submergem um filho em águas profundas, palavras que o resgatam com um abraço líquido, beijos no rosto, mãos cravadas na carne.

Escrever é remoer durante dias nos contornos daquele universo que nos habita, um universo paralelo ao da nossa vida real, para logo depois se ficar consternado frente a uma linha de texto incompleta, pendente da sua vontade, com o nosso coração a bombear sangue pelo corpo todo a uma velocidade furiosa, com a nossa respiração percussiva a ribombar nos ouvidos como banda sonora.

Escrever é os dedos pousados com afeto numas quantas teclas do computador, refreados pela trela que lhe colocamos de correr arrebatadamente até à palavra FIM.  

Protege-me daquilo que eu quero

Quanto tempo é muito tempo? Quanto tempo é tempo demais? E poderá o tempo ter um tal efeito corruptor que a sua passagem nos deixe danificados para sempre?

Ainda adolescente acho que já tinha a noção, embora de forma inconsciente, como uma presença que se movia sub-repticiamente ao meu redor, de que me deveria proteger daquilo que queria, porque aquilo que eu queria não era para mim, não era coisa que eu devesse querer.

Na tentativa de iludir esse meu querer, escolhi caminhos, estradas e becos de vida que, como se costuma dizer, não lembram ao menino Jesus. Se é possível alguém fazer tudo errado num percurso de vida, é bem capaz de o ser. Eu pelo menos tentei.

Escrevi o meu primeiro romance a meio da minha década de vinte. Um calhamaço histórico, escrito numa fúria desenfreada, sem filtro e cada dia em que me sentava para escrever no computador, era como entrar em transe, mergulhar num universo que me absorvia, me puxava pelos pés, não me deixava escapar. Não o fazia em segredo, mas não era algo que gostasse de me gabar. Fazia-o porque precisava, porque me sentia impelida a fazê-lo. Uma espécie de urgência aliada à necessidade de escapismo.

E no precisar parece que não há arte. 

Mas há algo de perverso na escrita, na criação de mundos, de universos paralelos. Quando se tem de regressar ao mundo do Aqui e do Agora, instala-se uma solidão medonha e dessa solidão nasce uma vontade mesquinha de encontrar alguém que seja como nós, que veja o mundo como nós, que use os mesmos óculos de ver a realidade, uns óculos iguais aos nossos. E quanto mais escrevemos mais nos afastamos do real, mais as personagens encerradas dentro do disco rígido do nosso computador deixam de ser letras numa página branca, ganham formas e reclamam do nosso abandono quando pomos fim à vida que lhes criámos.

Tentei de todas as formas que conhecia na altura (e também agora) dar-lhes uma oportunidade de vida e, certamente, também curar o meu ego ferido por um querer que não me era devido. Dos muitos envios a editoras ao longo de duas décadas, os dedos de uma mão chegarão para contar as respostas obtidas. Entre os Nãos simpáticos e o silêncio, eu sabia o que deveria fazer.

Parar.

Meses passados de um doloroso luto ─ que não é apenas luto, mas crime também, pois não tive eu de matar personagens, incendiar e terraplanar mundos, votá-los todos ao esquecimento, ao abandono ─ tento ser uma pessoa normal, brincar às pessoas normais. Ter um trabalho normal, gostar de coisas normais, conversar sobre assuntos normais. Mas há algo na minha natureza profundamente anormal.

Volto ao mesmo. Caio, esmurro-me toda, levanto-me, sacudo-me e, raios me partam, volto a cair meia dúzia de metros depois. É um estado de dissonância cognitiva permanente, em que de estado transitório, habito o Estado Nação da Dissonância.

Mesmo quando não escrevo, seja sentada a um computador ou num caderno de rascunho, aquilo germina, ganha formas, voz e corpo, arquitetura e cheiro, sons distintos. Estou a conduzir, estou nas aulas, estou no trabalho, estou no supermercado, estou a ver uma parvoíce qualquer no telemóvel, e uma frase sai de uma boca, um medo obscuro revela-se num deles, um prédio monta-se, como um lego, numa paisagem urbana, uma comida feita com amor é levada à boca por alguém sem fome no seu desalento. Estas histórias crescem ao meu redor como ervas daninhas num inverno chuvoso, agarram-se-me às pernas, como uma hera e em menos de nada cobrem-me o corpo, a mente, não deixando qualquer nesga de mim a salvo.

Ao fim de três romances escritos, de duas décadas passadas, percebo que o impacto que a escrita e a solidão que lhe vem associada, o distanciamento criado pelos universos em que me levo a habitar, as dores de cada uma daquelas pessoas que, não sendo pessoas reais, vivem estranhamente comigo, me estão a causar um dano tal que, por esta altura, me parece um dano irreversível.

Em mim vivem pessoas, morrem pessoas, edificam-se edifício, bombardeiam-se outros, experienciam-se amores colossais, vivem-se amores ingénuos e banais, têm-se dúvidas atrozes, medos mesquinhos e medos dilacerantes, cantam-se músicas, dança-se e chora-se, desenterram-se memórias, criam-se novas e…

não sei se,

             sozinha,

consigo lidar com tudo isto.   

Melanina

mbappé.jpeg

Num direto televisivo de um canal argentino neste início do mundial no Qatar, um grupo de adeptos argentinos, que rodeava o jornalista de serviço, começou a entoar um cântico que rapidamente se demonstrou ser um cântico racista e transfóbico dirigido à seleção francesa de futebol masculino.

Um cântico ensaiado, estudado, com direito a rimas e tudo. Uma pequena obra de arte poética racista.

O repórter, percebendo o conteúdo lírico da arte em questão, tirou-lhes a antena, o microfone. Mas tarde demais.

Apanhando a notícia do sucedido em órgãos de comunicação portugueses, surpresa das surpresas, a maioria dos comentários, embora recriminassem o sucedido (antagonismos com a seleção francesa justificam esta benevolência), justificavam os cânticos com um simples: «É mau, mas é verdade.»

No geral da ofensa, o facto dos jogadores franceses serem maioritariamente negros, era sinónimo de virem todos de Angola (não serem franceses). No entanto, embora os cânticos visassem a seleção francesa, tinham como alvo particular o jogador Kylian Mbappé. Dele, referiam o facto de os pais serem de origem nigeriana e camaronesa e dele ainda assim ser considerado francês. Faziam ainda referência ao rumor do jogador namorar com uma mulher transsexual (em termos que nem uma criança do primeiro ciclo acha adequados).

Uma aberração ofensiva que ainda assim ecoava positivamente por estas bandas. Lia aqueles comentários e pensava como a distribuição de melanina tinha um tal poder de limitar fronteiras, excluir cidadãos, ostracizar uns e, paradoxalmente, incluir outros sem reservas. A melanina tinha o poder de incluir ou excluir alguém destas comunidades imaginadas que são os nossos países (países ocidentais), como se países, comunidades fossem clubes privados com regras dúbias, bares de jogo clandestino numa cave bafienta.

Mbappé nasceu em França, é cidadão francês. Os pais nasceram fora de França e isso parece ser fator de preocupação para os racistas de serviço. No entanto, o que é isso de ser daqui ou dali? Até onde tem a árvore genealógica de recuar para alguém ser considerado de determinado sítio?

Se o teu primo branco nasce em França dos teus tios portugueses, foi registado em França, tu dizes que ele é francês, mas se Mbappé nasce em França, filho de pais nigeriano e camaronês, tu tratas de o excluir automaticamente do país França (um cidadão de lado nenhum ou um cidadão de uma geral África).

Claro que não há preocupação com os familiares diretos de Griezmann (também jogador da seleção francesa). Griezmann (graças a deus) foi presenteado com uma menor distribuição de melanina. Interessa lá saber de onde diabo vieram os pais. O caso não se coloca, mesmo que os ascendentes do jogador não sejam franceses.

Há uma exclusão automática de uma comunidade baseada unicamente no tom de pele. E se te perguntam: és de onde? E respondes França, Portugal, Espanha ou Itália, dependendo da tua melanina, pode surgir a pergunta sequente à tua óbvia resposta: Mas de onde és MESMO?

E o tempo passa e isto é tudo tão (e cada vez mais) estapafúrdio. Não se coloca a questão para estes adeptos dos jogadores terem ou não qualidades como jogadores, na elaboração dos seus cânticos de apoio (?) à sua seleção. No meio de uma falta de noção e empatia (numa quase psicopatia), seguem a opção (que não deveria sequer existir) da ofensa racial, da ofensa sexual, reduzindo o adepto de futebol a um ser grunho estereotipado.

Mbappé, devido a ofensas racistas no passado, tinha já colocado a possibilidade de abandonar a seleção francesa. E assim são os bullies, sabem onde apertar para fazer doer mais. Perpetuam um ciclo de ofensas, solidificam (mesmo que inadvertidamente) movimentos nacionalistas racistas e xenófobos, deixando para trás um mundo onde nenhum cidadão empático gostaria de viver. Um rasto de destruição.

E mesmo dentro de portas dessa comunidade, quantos seres humanos não passaram de incluídos a excluídos dependendo dos resultados das suas atividades?! De português de gema a africano de lado nenhum se o golo entra ou não entra, se foi decisivo para a vitória ou se, pelo contrário, foi decisivo para a derrota.

E baseamos as fronteiras de um país, a pertença a uma comunidade nestas migalhas de coisa nenhuma, fazendo cidadãos viverem uma vida de ostracismo, sentimento de não pertença, tudo porque a melanina não se enquadra na nossa paleta de cores pré estabelecidas.  

Num evento desportivo já inqualificável por falta de adjetivos adequados, isto é apenas mais um parágrafo no Mau Demais.

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